sábado, 22 de novembro de 2008

Apocalipse no sertão

Nada acontecia de muito novo naquele interior esquecido por Deus. O ritmo lento, com o sino da Igreja a marcar o tempo, o andar cansado de lá para cá, o burro de osso e carne suportando um peso maior de que o seu, as crianças com a barriga inchada a correr atrás de qualquer bicho. Meio que se esperava o dia de morrer. Nada mudava. Até um dia qualquer, num desses tantos verões...

Estava no meio da tarde, quando chegou um homem na cidade, franzino e calvo, com um andar ereto, carregando uma pequena maleta negra. Atravessando a pequena rua de terra, dirigiu-se ao centro da praça, subiu no velho coreto e retirou um grosso tomo de papéis velhos. Montou uma bancada para apoiá-los, aproximou-se da muretinha de madeira, ajeitou o restinho de cabelo que circundava a cabeça e começou a falar. Não chamou ninguém, mas as pessoas começaram a se juntar para ver o que acontecia.

Parecia que não havia necessidade de dizer algo. Aquele texto tinha o objetivo único de impressionar. As palavras, selecionadas pelo seu impacto fônico, não eram para ser compreendidas, somente sentidas, aumentar a grandeza de quem falava. Os adjetivos, utilizados para ornamentar a retórica, construindo a imagem grandiloqüente dos substantivos a que emprestava qualidade. E quantos circunflexos e proparoxítonas não estavam contidas em seu discurso!? Sim, era belo, na voz grave daquele homem, mas em texto, as frases e orações diziam pouca coisa, ou nada. Era elogiável o seu talento para declamar, o controle da entonação, que não deixava ninguém dormir; seus gestos enfáticos, tudo era uma encenação teatral de altíssima dramaticidade.

O povo estarrecido olhava como se fosse a sétima maravilha do mundo. Que sabedoria naquele homem! Aplaudiam e gritavam a cada entusiasmo do orador. De terno e gravata, suava em bicas por causa do grande calor que fazia na cidade. Pessoa importante, merecia todo o respeito. A autoridade emanava daquela imagem, que enunciava sons incompreensíveis, mas impactantes; e externava importância em suas vestes.

Começou a chover. Nem o homem nem o povo dispersavam. A lama emergia das ruas de terra em volta da praça. As mulheres levantavam as mãos para o céu, erguiam os seus filhos sobre as cabeças, como se quisessem alcançar uma graça. A alegria nos olhos daquela gente passava uma certa tristeza. Uma pequena cidade no sertão, pouca água, pouca comida, muita miséria e judiação. O que caía do céu naquele instante era um milagre. Algum homem mais ilustrado que passasse por ali pensaria que era um político, ou um pastor, mas ao ouvir a mensagem, não distinguiria nem um nem outro. A multidão cada vez crescia mais, e mais...Chegavam crianças, velhos, mães, cachaceiros, padres, mendigos, trabalhadores. Era a hora do crepúsculo, os sinos não tocaram e o espetáculo continuava.

A praça ficou pequena. A chuva apertava. O vento levara o telhado do coreto. O suor e a água da chuva misturavam-se na tez do homem. Suas roupas molhadas acabaram com o alinhamento em que chegara. Sua voz não tinha limites. Continuava a falar e o povo a assistir. Não havia polícia nem qualquer autoridade. Ninguém sabia quem era aquele homem, mas ele falava bonito. Muitos começaram a chorar, sem saber direito o porquê. Foi gente chegando sem parar. Sem microfone, a voz do orador aumentava a distâncias cada vez maiores, atingindo sempre a um diâmetro mais extenso. Como era possível? Não havia idéia, mas também quem parou para pensar nisso? Em pouco tempo, a multidão ultrapassava os limites da cidade, penetrando por suas poucas ruelas, em todas as direções possíveis.

O tempo passava, a chuva a cair, cair,...o homem a falar, falar.....e ninguém saía do seu lugar, mas chegavam. Nunca chovera tanto por aquelas paragens, nem tanta gente havia se visto. Mas ninguém ligava. Parecia uma espécie de encantamento que o homem careca, aliado à chuva, fazia no povo. Os papéis, que serviam de referência ao orador, há horas virara uma pasta de celulose. Já não fazia diferença. Aquele homenzinho estava encarnado, falava já tudo de cabeça. Cada vez que chegava mais gente, mais a chuva apertava, e mais alta e grave a voz ficava.

A lama engrossava e avançava sobre o tornozelo das pessoas. Repentinamente, começou a trovejar. Alguns minutos depois, raios começaram a cair sobre as casas, a incendiá-las. Em vez de apagar, a água que caia do céu aumentava as labaredas. Mesmo assim nada era percebido, e mais gente, quase que brotando da terra, chegava. Choros, gritos, urros, sussurros, gemidos de prazer. Ouvia se de tudo da massa, mas como um mero pano de fundo ao som que vinha do centro.

Já avançava pelo meio da madrugada. Toda a gente pobre e miserável do mundo parecia estar reunida naquele momento em volta do velho coreto. Toda a sede, a fome, o frio e a dor encontravam-se ali, e haviam sido esquecidos. De alguma maneira, como algo sem explicação, havia felicidade naquelas pessoas. Um trovão longo e estrondoso ressoou, superando a gravidade do orador. Mas o barulho vinha da terra, e ela começou a tremer. Partindo do coreto, imensos buracos começaram a abrir-se das rachaduras no chão, a engolir todos. Os casebres em fogo imergiam dentro de imensas chamas subterrâneas. Mas ninguém se desesperava, ninguém corria. Todos se resignavam.

Pela manhã, somente o que sobrara de toda a cidade foi o coreto. Sobre ele, a silhueta de um homem, petrificada. Nunca ninguém entendeu o que acontecera. Durante anos e anos, cientistas tentaram arrumar uma explicação. Mas não havia. Os devorados pela terra não deixaram memória, identidade ou lembranças. Ninguém dera pela falta deles.Por décadas e décadas reinou a felicidade. O sertão virara mar e toda a miséria daquela região deixou de existir. Oraram a Deus.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Sonho

Ao entrar no quarto, a irmã estirada. A cabeça ensanguentada, aparentemente esmagada, quase dentro do chão. A avó e a mãe abrem a porta em seguida. Choros de desespero ante o sangue demarrado. Gritos de socorro, uma delas ergue o corpo de encontro ao seu. Pensam que está viva. ¨Deixem-na, está morta¨. Omite-se o complemento, que enche o peito de dor. ¨Ela se suicidou¨.

Ao despertar, sem sustos, somente alívio, pressentimento, tremor. Mas disso, só ele sabe...

Ainda há tempo!

domingo, 9 de novembro de 2008

Em algum sábado à noite ...

Quero aproveitar esta noite. Não vou para a gandaia, muito menos encontrar a mulher amada. Não vou me encher de drogas, nem encontrar aqueles velhos amigos para relembrar nossos momentos memoráveis. Definitivamente não!

Esta noite de sábado, onde a maioria dos jovens de minha idade estão se acabando na mais pura diversão, aproveitando a flor da juventude, cá estou,completamente sozinho. Também sem cerveja, cigarros ou televisão. Só há meus pensamentos, incrivelmente calmos, a lâmpada acesa da sala, o barulho do ventilador de teto nesta quente noite de primavera.

Ao contrário do que possam pensar, não há nostalgias ou frustrações.Reina uma certa paz de espírito, a respiração calma, um sutil inebriamento de sono. São aproximadamente onze horas da noite, embora não importe muito. O corpo descansa no sofá, o queixo nas costas da mão esquerda. A mente trabalha sem pressa. Na mão direita, um lápis, a escrever numa folha de caderno.

Anota-se as divagações desse momento suspenso, onde tudo parece sem importância. A ponta do grafite desenha as letras de uma estória sendo contada (e esse é o exato momento da criação) e registrada, como uma oferenda do tempo presente ao tempo futuro. A estória de uma noite que um homem dedicou somente a ele próprio, a contemplar seus pensamentos em palavra escrita.

Qualquer esforço encontra-se ausente. Os segundos e minutos não são percebidos, pois nada há que lembre o tempo. O sentimento é de um estranho prazer, sem êxtase, medido e tranqüilo. Não se consome, não se relaciona, não se deseja. Não há lembranças. Só eu existo, nesse diálogo silencioso comigo mesmo. Não há utilidade para nada, ou interesse, somente um homem, que numa noite, não quer fazer nada além de escrever sobre sua falta de vontade em fazer algo sem ser escrever deitado sobre a sua noite desinteressante.

Há desânimo, mas não tristeza. Uso as palavras do jeito que quiser, no tempo verbal que bem entender, na pessoa que me der na telha. E se eu quiser repetir as palavras, frases, orações inteiras, eu faço. Aqui eu mando mesmo sem estar com muito saco para mandar. Pinto e bordo. Classifico e nomeio as coisas do jeito que quiser. Posso ser viado, pedófilo, maconheiro.....até flamenguista. Aqui, nenhuma categoria do convencional mundo social vale. É meu, só meu (e não há posse, pois só há eu) , e faço desse reino das minhas letras o lugar das minhas realizações e desejos (mesmo que nenhum me acometa nesse momento).

E pouco importa se essa noite não valer de nada. Ela foi feita pra não valer, pra não se viver, apenas deixar passar, como passa enquanto penso no ponto final depois de escrever fim.