domingo, 30 de maio de 2010

Outro dia um amigo me disse: -Marcelo, pára com isso de ser meu amigo, você é o Marcelo.

Descobri ontem que esse Marcelo não é facilmente reconhecível. Onde estão suas estórias, aventuras e desventuras? Quais são as suas paixões, seus sonhos, e principalmente as suas vontades?

Acordei sem esse horizonte, do sujeito que se auto-reconhece, e nos primeiros momentos é difícil viver assim.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Uma grande mulher

Ela tinha uma inocência poética nas palavras
Certa vez, ao assistir um céu noturno cheio de estrelas, disse que parecia poder pegá-las com as mãos
[Foi o instante em que me apaixonei]

Tratava com a mesma delicadeza e generosidade o doutor e o mendigo
Fazia do trabalho um complemento necessário de sua vida, não estabelecendo distinções ou subtraindo-lhe as pessoas que amava
Esperava sempre o melhor do outro, mesmo que este lhe mostrasse a face mais cruel

Nunca conheci mulher igual, e olha que tinha aquele sotaque detestável, embora em sua boca parecesse o canto dos anjos
Sempre penso nela, e ao fazer isso, animo-me a enfrentar as asperezas do dia
Me faz querer ser um grande homem e lutar para melhorar o mundo pelo simples fato deste incluí-la
[a propósito, saber que ela existe me faz ver beleza em tudo]

Eu a conheci há um tempo, não saberia precisar, porque essa memória intensamente viva me causa a impressão de que acabei de encontrá-la.

Infelizmente, intangível, devota seu amor a outro

Devo a isso a eternidade do sentimento

P.S.:Amando sempre como um garoto de 12 anos, e feliz.

domingo, 2 de maio de 2010

Decadence (parte 1)

Esta é uma estória em duas, mais compreensível seria se fossem duas em uma, mas será o homem um apenas, ou será que numa vida cabe mais que um? Esta poderia ser dita como a estória de realidade e sonho, mas o texto é um, o que elimina qualquer distinção, sendo os dois estória, tão real o sonho quanto tão sonhada a vida, é tudo palavra, é tudo imaginação.

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A atmosfera do minúsculo apartamento era literalmente tóxica. Ao visitante desavisado, aquele ambiente fazia arder aos olhos e faltar o ar. As duas únicas janelas davam uma para o muro do prédio vizinho, a outra para a asquerosa área de serviço do andar. Ambas trancadas.

Eram três da madrugada no relógio de parede da pequena cozinha. Sobre a pia, copos e mais copos sujos se acumulavam. Em um canto qualquer, a cafeteira permanentemente ligada aquecia um resto de bebida. Não havia geladeira, muito menos fogão.

Uma pequena mureta separava a cozinha do quarto-sala-escritório-casa de João. Estava sentado em frente a uma mesa, e um abajur de madeira pequeno – a única luz acesa - iluminava sua atividade e uma densa mistura de fumaça e poeira. Mais a direita, um pacote de Hollywood vermelho aberto, dois maços vazios amassados, outro pela metade com um isqueiro por cima, um cinzeiro quase transbordando de cinzas e guimbas, com um aceso a queimar. Ao lado esquerdo, contava-se um copo quase vazio de café, que deixava mais uma marca dentre tantas sobre o verniz. Debaixo de seus olhos, um caderno espiral aberto, com o cilindro de arame lotado de vestígios das folhas arrancadas que se espalhavam pelo chão, amassadas.

Uma bic com a carga no final passeava habilmente por entre os dedos de João. A cadeira inclinava-se para trás, projetando seu olhar para o teto. Estava com um gasto casaco jeans, calças de moleton velhas e meias desfiadas. Os cabelos desgrenhados denunciavam o desleixo, os dentes amarelados os vícios, o rosto pálido os dias trancados, as olheiras a insônia.

Havia um estranho silêncio, incomum pela proximidade a rua movimentada. O barulho de sua respiração era alto, e o único que se podia ouvir. Ensimesmado, parecia instigado pelo ritmo de seu peito, sobre o qual a outra mão pousava. O caminho inevitável de uma vida desregrada. Asma, enfisema pulmonar, Câncer de pulmão. O que será que pensava João? Quiçá pudesse ouvir seus pensamentos, mas era impossível. Afinal, quem ouviria? Será que o som do pensamento teria o tom de nossa voz?

Três toques fortes e secos na porta ressoaram pelo apartamento e João despertou de si, quase caindo da cadeira. O susto do barulho acelerou-lhe o coração. Recobrado, levantou-se afastando a mesa, o que fez subir uma grande nuvem de poeira. Pegou o cigarro do cinzeiro e após uma última tragada, o apagou ao levantar. Tossiu carregadamente duas vezes enquanto encaminhava-se a noroeste. Seus passos espalharam as bolas de papel pelo chão.

Olhou pelo olho mágico. Uma mulher de pele branca e cabelos negros encontrava-se do outro lado.

“O que você quer?”

“Foder” - respondeu uma voz desregulada.

“Vá embora, Jane, são três e meia da manhã”

“Abre essa porra logo!”

João abriu, girando a Papaiz e a chave. Cambaleante, Jane entrou no apartamento. Era uma mulher muito atraente, com um vestido verde daquele tecido que dá para sentir a pele. Ela olhou ao seu redor com uma expressão de asco, que se estendia a João.

“Que merda é essa! Isso aqui parece uma casa fantasma. Olha pra você, que lixo! Não quero mais foder.”

“Ótimo, vá embora.” – João abriu novamente a porta.

“Por quê tá falando assim? Não quer foder?”

“Você já disse que não quer, e eu menos ainda. Cai fora.”

“Você e essa merda de livro. Acho que você é viado, João.”

“Pode ser. Caí fora agora!”

Como se fosse de propósito, mas sob os efeitos da bebida, Jane caiu feito pedra no sofá de João, levantando outra nuvem de poeira intensa. João fechou a porta e aproximou-se de Jane. Que corpo era aquele?! Sentia desejo, após tantos dias de clausura. Inclinando o tronco para fora do sofá, Jane começou a vomitar no assoalho de taco. Era o fim do desejo. Deixou o vomito e a mulher onde estavam e voltou à cadeira. Olhando para o teto, acendeu um cigarro, e após uma boa tragada, escreveu uma palavra – decadência.
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O volume da TV na sala aumentou de repente. O teto era branco, e para ele XXXX olhava sem ver. Via seu sonho. Levantou e caminhou à cozinha. Pedofilia novamente. Seus pais não perdiam um dia sequer.

Colocou o café no copo e sentou-se na mesa da cozinha. As vozes que chegavam da sala comentavam a mesma coisa de todos os dias. “Como é que pode um pai fazer isso com a filha?” “Que monstruosidade.” “Esse homem não tem Deus no coração” “Muda de canal, esse cara é doente”. Todo dia, pelo menos por meia hora, assistia-se ao noticiário sensacionalista que defendia a pena de morte e acusava de antemão a qualquer criminoso que caísse nas suas garras. A TV ficava ligada o dia todo, e afora as novelas, os únicos programas impreterivelmente assistidos eram os noticiários. Todo o dia era arrastão, assaltos, balas perdidas, pedofilia.

XXXX tinha horror a tudo aquilo exatamente pela consciência que tinha de como aqueles programas afetavam a sua vida. Realimentavam o medo da rua com que fora criado desde criança. Crescera em condomínios, sem poder por o pé na rua. “Cuidado, é perigoso” fora a expressão mais ouvida durante toda a sua vida. E tudo era perigoso, sair à noite, conhecer pessoas novas, ir para lugares desconhecidos, tomar decisões. XXXX passara boa parte da vida ansiando pelo inseguro. Vinte anos não vividos.
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Quando se diz que algo está decadente, é normal pensarmos que houve um momento melhor, de sucesso, de desempenho elevado, de maior vitalidade. Não era bem essa acepção que fazia a cabeça de XXXX. Em sua cabeça, este termo tinha a forma de um estilo de vida misógino, egocêntrico, sujo e autodestrutivo. Era antes forma, imagem, do que qualquer outra coisa. A decadência era a sua fantasia de vida ideal, aquela que não tinha coragem de viver, mas que achava extremamente atraente.

Passava algumas horas por dia à frente do computador. Abria um documento de word e ficava alguns momento olhando para a tela com a página em branco. O barulho impertinente que a casa produzia logo o convencia de que era impossível concentração e paciência para escrever seus pensamentos sujos. Na miríade de prazeres oferecida pela internet, pegava-se nos vídeos pornôs, nas fotos de mulheres nuas. Masturbava-se, e o gozo lhe trazia o peso da culpa, de ter sido vencido pela compulsão de seus instintos. Com as mãos limpas, voltava ao PC, onde abria seu software de conversação. Lá construía sua personalidade. Identificava-se como John Milton, escritor inglês do século XVII, mas cuja existência só soube a partir do filme Advogado do Diabo, no qual Al Pacino encarnava o diabo sob a forma humana de um advogado, homônimo ao autor de Paradise Lost. Abaixo, uma citação extraída de um frustrado poeta brasileiro, da geração ultra-romântica: “Tudo é podre no mundo. Que me importa que ele amanhã se esboroe e que desabe, se a natureza para mim está morta”. No espaço reservado para a imagem, uma pintura de 1847, chamada Romans in the Decadence of the Empire, de um francês chamado Thomas Coulture, escolhida por ter sido a única imagem razoavelmente decente que encontrou com a palavra decadence no site de busca.



Com o personagem construído, passava horas e horas conversando nos chats, buscando conversar sobre sua visão de mundo. Como tinha um blog em que despejava sua visão “pessimista” e esbanjava sua erudição de orelha de livro, conseguia atrair algumas mulheres impressionadas com suas referências, e as colecionava na sua lista. Mas nunca saia dali, no máximo para as aulas da faculdade, onde tentava se formar em Literatura. Ampliava a cada dia mais esse mal estar consigo mesmo. Fazia questão de dizer-se odiando, por mais que precisasse sempre conversar. Odiar era um verbo fácil de usar quando se recusava o mundo em nome de uma ficção imaginada. Afinal, era o que praticava todo o tempo.