domingo, 21 de dezembro de 2008

O cadáver

¨Tem um homem morto lá embaixo.¨

Vejo defuntos todo o dia na tv. Sou fã de filmes de ação, onde a morte, em suas mil modalidades, é o atrativo principal. Pela manhã, o tablóide popular trás sempre alguns falecimentos- chefes do tráfico, policiais, crianças, idosos, pessoas famosas- cuja ¨causa mortis¨ são de todas as naturezas possíveis -assassinatos encomendados, roubo seguido de morte, bala perdida, negligência médica, descaso público. Nos noticiários televisivos, tais fatos são repetidos, decerto numa exposição mais dramática, que a letra escrita da imprensa não é capaz de expor.

A notícia recebida na descida da rua gelou-me a espinha. A possibilidade de defrontar-me com um cadáver exposto nas vias públicas não é corriqueira como apontam as estatísticas da Secretaria de Segurança Pública. Moro perto do morro, mas esse é um fato para grande parte dos moradores do Rio de Janeiro. É asfalto ainda, o Estado está presente não somente pela presença de sua força policial. Escuto tiroteios com uma rotina maior do que gostaria, fruto da ação dos protetores da vida dos cidadãos pagadores de impostos, em suas incursões nas ¨comunidades¨, um conceito moderno para expressar o espaço destinado aqueles excluídos das benesses do poder público e do capital.

Fim da ladeira, dobro à esquerda. Gente amontoada um pouco adiante, cercando uma viatura policial. Passo cautelosamente, o coração um pouco acelerado, os olhos vidrados na cena, e as pernas assustadas, querendo seguir o caminho pré-estabelecido. Sou acometido pela minha natureza curiosa de espécie humana. O fim público de uma vida é evento concorrido, e a necessidade de saber sobre o fato torna-se um imperativo.

Há um corpo estirado, envolto num saco preto. Vê-se somente o tênis Adidas soçaite e a bainha da calça jeans escura. As versões da morte circulam, sem necessidade de interrogações.

¨Foi morte encomendada, o rapaz era guardador de carros aqui em frente.¨
¨Vieram perseguindo a pé desde a Saens Pena, assaltaram um banco por lá.¨
¨O bandido matou, o homem reagiu.¨

A verdade, naquele instante, não importava. A circulação de informações sobre aquela estória não valia pelo grau de reflexão embutido, mas era gerada pela mera contigência de dizer algo, de comentar o esplendoroso acontecimento. Não fiquei até chegarem os carros de reportagem. Fui ao mercado e voltei, pelo mesmo caminho, e o corpo continuava lá, com o círculo de pessoas a admirarem e comentar.

Mais tarde em casa, soube que deu no telejornal. Houve tiroteio e pânico na Hadock Lobo. Dois homens, que praticavam o assalto conhecido como ¨saidinha de banco¨, foram flagrados por dois policiais que passavam . Tentaram fugir em sua moto, mas foram perseguidos. Um deles escapou, fazendo uma manobra milagrosa, na qual passara do veículo de duas rodas para um taxi que esperava o sinal abrir. O outro, mais jovem, acabou ali, dentro do saco preto, furado pelas balas da lei.

Seu nome era Walter Reis, 16 anos.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

sábado, 6 de dezembro de 2008

O Banho

Faltara água no prédio, estavam impermeabilizando a caixa d`água. Há dez dias. O dia de trabalho na Bolsa fora estafante, como sempre, e só existia um balde dentro de casa. Meia-noite e meia, e o acesso à cisterna estava fechado.

O homem passara a semana no escritório de sua corretora, que possuía um confortável vestiário. Maldita idéia de vir para casa direto, pensou. Sentia-se sujo, e ficar sem tomar banho não era uma opção. Aquele balde teria que dar. Fazia um pouco de frio, então colocou para esquentar uma parte da água. Ajeitou sua roupa de dormir em cima da cama e pegou uma toalha limpa. Nesse meio tempo, a água fervera. Colocou o balde dentro do box e despejou a água quente por cima da fria, quebrando um pouco a temperatura. Arranjou um recipiente – uma pequena e antiga panela de alumínio – para fazer o transporte da água para o seu corpo.

Tirou a roupa e entrou no box. Ao primeiro instante - um grande e largo homem pelado com o recipiente na mão - veio uma lembrança a surpreender-lhe – um nome: o baldinho. Era como se chamava a panelinha com que tomava banho quando menino – uns oito ou nove anos – época em que morava no três-sete-meia da Hadock Lobo. Não era do tipo que guardava reminiscências bucólicas. Fora uma criança de condomínio, com chuveiro e água encanada. Porém, durante anos, até se mudarem para São Cristóvão, aquele apartamento permanecera sem chuveiro elétrico ou aquecedor. Nos dias de frio, mamãe esquentava-lhe a água e tomava banho quebrado e de baldinho – tivera muita alergia, por isso o pediatra não recomendava banhos muito quentes.

A atípica recordação divertiu-lhe, tirando o mau-humor da circunstância. De repente, o sorriso sumiu do rosto do homem gordo. Por onde começar? Um corpo imenso e pouca água. O que fazer? Após uns instantes coçando a cabeça, decidiu começar por ela mesmo, seguindo a lógica de que a água acabaria por descer pelo tronco, a molhar-lhe todo o resto. Curvou-se com o baldinho na mão esquerda, encheu-lhe de água e fez o que pensara, utilizando o outro braço para espalhar a água que descia pelo seu tronco. Repetiu o movimento umas três ou quatro vezes, deixando-o molhado o suficiente para o ensaboamento.

Abandonara o baldinho flutuando no balde e começou a passar o sabonete. Era diferente de um banho de chuveiro. Não havia aquele jato forte, que descia frenético, quente e anestesiante, a desviar-lhe o pensamento em outras direções. Só se ouvia a fricção do sabonete com os pêlos do corpo. Era interessante, parecia a primeira vez que prestava atenção no ato de ensaboar-se. Cansado demais para pensar em qualquer coisa, concentrou-se naquela descoberta. Cobria de branco os peitos caídos, a volumosa barriga, os braços flácidos e o dorso dobrado de gordura . Sentia-se tocar, expressão que só ouvira nos filmes de adulto, em boca de mulheres esculturais. Era estranho e sensual, mas calmo. Não havia ereção, mas era sexo. Fechou os olhos e pôs-se a sorrir, um sorriso gostoso, leve e descomprometido, quase a reação deslumbrada de uma criança com coisa nova e fascinante. Ficara minutos e minutos nesse (re) descobrir-se.

Um frio lhe acometera, o que rompeu a sua imersão sexual. O balde cheio um pouco aquém da metade. Seria necessário prudência para não terminar o banho com espuma espalhada. À medida que enchia o baldinho, dispunha-lhe aos poucos, por cada parte ensaboada, com o toque da mão a acompanhar o enxágüe. O som da água caindo sobre a pele gelou-lhe a espinha. Um sentimento primitivo e poderoso tomou o homem. Dominava ritmo, volume e gravidade da água derramada. A percepção do banhar-se, a delicadeza em dedicar atenção às curvas e dobradiças escondidas do seu corpo gorduroso; tratava-se de um trabalho paciente e ao mesmo tempo (e novamente) de descoberta. Era sensual, extravagante. Sentiu uma liberdade constrangedora em devassar-se. Ao acabar a água do balde, uma tristeza tomou-lhe. Saiu do box. Na frente do espelho a secar-se, via o seu corpo, antes repulsivo, com olhos bem mais benevolentes.

Algo diferente aconteceu. Chorou.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Naquele lugar...

Existe o tempo necessário para olhar o céu. Não há prédios e marquizes. É permitido admirar as estrelas, achar constelações e nomeá-las ao bel-prazer. Se satisfaz em conhecer coisas novas, pelo simples prazer de conhecer.
Observa-se a vida das flores, reconhecendo-lhes os odores. A queda das folhas no outono faz pensar a morte das criaturas e o peso do invísivel. É possível ouvir o canto dos passáros, e escrever óperas sobre a natureza. Senta-se na varanda e desfruta-se do toque da brisa no rosto. A conversa com os amigos acontece sem preocupações, confessa-lhes sem qualquer pudor os amores e coisas íntimas.
Alcança-se noção das palavras e seus efeitos, e as dotam de novos sentidos. Faz-se dos palavrões elogios comoventes e criam-se combinações tão profundas que provocam gozo. Gramáticas e sintaxes são elaboradas com o único princípio e fim da compreensão alheia, tornando qualquer desacordo possível de entendimento, sem afetar a variedade dos pontos de vista.
Elimina-se qualquer vontade de morrer, mas não se teme a finitude. Aceita-se a presença da dor como matéria de construção do espírito elevado.Perde-se a noção dos segundos, minutos e horas. Guia-se pela fome e o caminho do Sol e da Lua. Tem-se a virtude da paciência e não se lamenta pelo que não se tem.

Este lugar não tem endereço fixo. Flutua no sítio imenso do desejo, ocupa infinitos hectares de sonho e luta-se ardentemente para alarga-lhe as fronteiras. Mundo real adentro.