sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Peso imenso no peito

Eu tenho um peso imenso no coração. Sinto-lhe a cada momento, a cada respiração. Nos últimos tempos, ando percebendo-lhe com mais força. Esse peso parece ser a origem dos meus risos, das minhas lágrimas, das minhas alegrias, preocupações e tristezas. E é como se sempre estivesse ali alojado, no lado esquerdo do peito, mas só agora percebesse a sua existência, e essa percepção me desse conta da minha própria existência. Uma espécie da calma contemplativa que de uma hora para outra me tomasse, abrindo uma janela incrivelmente panorâmica de mim sobre mim.

É como se tivesse descoberto o mapa dos sentimentos, e agora não quero mais nada além de sentir. Eu os provoco constantemente, buscando aquilo que por tanto tempo ignorei. Só me basta sentir este peso imenso no meu peito.

Outra solução seria procurar um cardiologista. Os efeitos do cigarro podem ser devastadores.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Na varanda


Marcelo vai a varanda da casa de samba para fumar. Outros fumantes também lá se encontram. Enquanto observa o movimento da rua do Riachuelo, tragando o seu cigarro, duas meninas se aproximam do rapaz, conversando animadamente. Acendem seus respectivos
cigarros, e uma delas, olhando um conjunto de balões de festa amarrados na grade da varanda, volta-se para Marcelo com um olhar travesso, e aproximando seu cigarro dos balões, pergunta:

-Posso?

Com um ar blasé, Marcelo responde:

-Fique a vontade.

A menina estoura o primeiro, Marcelo se anima e estoura outro em seguida, e assim seguem até que todos são estourados.A menina volta-se novamente a Marcelo:

- É bom, né!?

O rapaz acena afirmativamente com a cabeça, sem nada dizer.

Em seguida, após um breve momento reflexivo, Marcelo pergunta:

-Escuta, você bem que poderia gostar de mim?

-Sério, e como? - A menina responde ironicamente.

-Não faço a mínima idéia, você quer que eu pense em tudo também?!

A menina e sua amiga soltam uma gargalhada.

-Você é engraçado.

-E você é a menina mais linda que eu já vi.

-Deixa de ser mentiroso, você só está falando isso para me pegar.

-Bem, se o seu auto-estima não a deixa reconhecer este fato, problema é seu, mas não queira
questionar a minha verdade.

Ambas ficam estarrecidas com a resposta do rapaz.

-Você acha que vai conseguir alguma coisa com essa grosseria?

-Eu sei que não, mas fazer o quê, nunca fui bom nisso mesmo.

-Você é muito estranho!

As meninas vão embora, cochichando debochadamente sobre o acontecimento. Pensativo, Marcelo volta novamente o seu olhar para o movimento da rua, acende outro cigarro, e pensa consigo mesmo:

-Por que eu sempre faço isso?

domingo, 25 de outubro de 2009

Uma Boa Surpresa!

Poucas vezes, em minha razoável história de espectador de filmes, fui tão surpreendido por um filme como por Adventureland. Primeiramente, pela tradução do nome do filme para o português, que com o patético nome de “Férias Frustradas de Verão”, remete à série de filmes protagonizadas por Chevy Chase, no final dos anos 80. Um amigo indicou-me o filme (Alô Vinicius!), e seu bom gosto para filmes me levou a renegar o preconceito da primeira impressão. Ao procurar mais sobre o filme, as coisas começaram a caminhar para uma promissora expectativa: o filme era dirigido por Gregg Motola, o mesmo de “Superbad”, talvez a melhor comédia dos últimos anos. No elenco, um dos personagens mais engraçados de “Superbad”, além da promissora Kirsten Stewart, cuja beleza juvenil e rebelde vem atraindo a atenção de Hollywood (e a minha) há algum tempo. Estranhei, por não vê-la como atriz de comédia, mas enfim, ainda jovem, nada demais variar um pouco de gênero.


Lançado nesse ano (2009) e saido diretamente em DVD no Brasil, o filme conta a história de James Brennan, um adolescente típico americano, que após terminar a High School, sonha em viajar pela Europa e em culturas mais liberais em relação ao sexo, perder a virgindade. Ocorre que o pai acaba rebaixado de emprego, fazendo o seu sonho ir por água abaixo. Vê-se então obrigado a trabalhar num parque de diversões durante o verão, para poder bancar seus estudos numa Universidade de Nova York. É nesse emprego para losers que James conhece Em, uma misteriosa e bela jovem, que trabalha no parque para irritar a madrasta obcecada pelo status social.

Para quem, como eu, esperava uma comédia tipo Superbad, fazendo graça de absurdas e possíveis situações do cotidiano adolescente, deu com a cara na porta. Porém, se o humor não é tão extasiante, esse filme traz uma grande dose de sensibilidade, ao tratar das difíceis relações entre pais e filhos e das descobertas da juventude. Trazendo um jovem que idealiza o sexo ao ponto da ingenuidade, o filme trata com beleza e naturalidade o tema da virgindade, quebrando assim com os paradigmas das tradicionais comédias adolescentes norte-americanas (jovens em ebulição sexual ávidos por sexo). Jesse Eisenberg dá o tom certo de inocência ao personagem, e Kirsten Stewart coloca o peso devido no papel da garota mais experiente, passando longe dos estereótipos que geralmente são encarnados nesse tipo de papel.

Enfim, uma excelente surpresa, apesar do pacote causar um pouco de receio.

P.S: Que diabos ocorre com as distribuidoras de filmes para o Brasil que fazem essas traduções que descaracterizam totalmente o filme. Por que não deixar Adventureland, em vez de inventar essas traduções toscas?

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Saindo do padrão


Vou sair um pouco do meu padrão de postagens e comentar rapidamente (são quase duas da manhã e amanhã é dia de branco) dois programas de televisão que me despertaram a atenção e me produziram efeitos distintos.

O primeiro, o qual acabei acompanhando a temporada quase inteira, foi o "Descolados", um seriado jovem que estreou esse ano na MTV (acho tão mais bonito quando falam aquele eMêTêVê bem abrasileirado). Com um elenco talentoso, um argumento bacana (três jovens encontram-se por acaso e resolvem dividir um apartamento em São Paulo, vivendo e dividindo as agruras e alegrias da juventude e da megalópole), estórias divertidas e bem construídas (apesar de nada profundas, produzem um bom entretenimento), além de um formato inovador de cinema digital (não entendo muito, mas me deu essa impressão) para programas desse tipo; torna-se, na minha opinião, um excelente entretenimento para as pessoas que gostam de acompanhar seriados que produzem uma certa identificação com a juventude atual (ou uma parte, talvez eu me encaixe nela, ainda), sem se ater a clichês ou subestimar a inteligência do espectador.

O segundo é o seriado "Aline", que passa na Globo às quintas à noite. Nutria uma certa expectativa em relação a este, devido principalmente ao elenco, destacando o promissor talento da intérprete da protagonista, Maria Flor, e ao mote inusitado de tratar do universo de uma menina meio louquinha com dois namorados e muita estória pra contar. Vou ser sincero. Apesar de ter me encantado pela beleza, simpatia e charme da protagonista, achei o programa bem ruinzinho, com uma falta de quimíca e, diria, até um certo engessamento do elenco, o abuso de clichês na composição dos personagens (uma versão mais inteligente - não é um elogio - da Clarah Averbruck, com dois namorados totalmente descompassados) , além de uma certa falta de leitmotiv na estória em si. Se por um lado, faltou um pouco de talento para o humor  dos atores e do próprio texto; por outro, nos momentos onde se buscou uma certa sensibilidade, explorar um momento mais sério e comovente, como numa cena onde Aline volta a casa onde foi criada e revive em pensamentos os momentos de sua infância e adolescência, me parece que faltou um cuidado mais sensível do diretor na construção do cena.

Talvez esteja sendo apressado, afinal, asssisti apenas a um capítulo desse seriado. Mas aqui deixo minha opinião sobre esse dois programas que me chamaram a atenção, positiva e negativamente.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Procura-se



Tenho estado a procura de algo para me obcecar e ando perdendo bastante tempo a pensar nisso. Deve relacionar-se com meu campo de trabalho (sou historiador, mas não precisa acreditar), a minha preocupação com o desenvolvimento de uma metalinguagem literária que reflita as condições possíveis de estórias, as mais diversas e infinitas escalas de observação do indivíduo, a historicidade do homem e da linguagem, a condição existencial na contemporaneidade (ou na pós-modernidade, dependendo da sua opção teórica). Estou pensando na possibilidade do acaso ser um belo tema para iniciar meu processo obsessivo (...)

domingo, 11 de outubro de 2009

Despertar

Nariz entupido, um pouco escorrendo
Mau hálito e remela no canto do olho
Voz embargada, cara amassada
Olhos inchados, ossos travados
Um imenso bom humor.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Identidade (I)

Alexandre Cabanel, Ophelia, 1883


Sua pele era tão pálida, e mais ficava junto às suas roupas, cabelos e maquiagem negras. Ouvia sempre uma música muito triste. Dizia a todos que vivia por viver e que em nada acreditava. Sua crença era afirmar a descrença. Lia Nietzsche, Heidegger, Camus, Sartre, e se dizia existencialista. Andava com gente parecida, viviam a fumar cigarros importados, beber cervejas importadas e conversar sobre a aspereza da vida. Tinha aforismos para tudo. Diziam pouco se foder para a miséria e a pobreza, afinal a existência já era em si cruel o bastante. Competiam para saber quem era a pior pessoa, a mais desprezível, a que mais havia sofrido. A menina era conhecida principalmente pelos panegíricos contra o amor, mas vivia sempre enrolada num novo relacionamento dedicado a dar errado, e lamentava-se a cada homem que a decepcionava, ou a quem decepcionava.


Era incrivelmente feliz assim!

quarta-feira, 7 de outubro de 2009


De nada adianta insistir numa relação que se resume ao prazer físico. Não é amor, não é vida. É dependência e auto-destruição. O homem vai mais além. Eu posso ir mais além!

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Lembrança

Sem título, 1980, Museu de Arte Erótica Romeo Zanchett


O meu primeiro gozo

tua boca a provar o gosto

do meu desejo pelo seu corpo

Aspirando suspiros

Devorando gemidos



O relevo suave dos seus pêlos

acariciando o meu rosto

Na trilha de beijos pelo seu corpo

Onde deixei meu desejo

E gozei de arrepios.

sábado, 3 de outubro de 2009

Predição

Jean-Louis David, A morte de Marat, 1793.
O que faço de melhor nessa vida? Advinha? Lamentar-me. Sou o campeão, tão bom que lamento a possibilidade de haver alguém que lamente mais e melhor do que eu. Alguém que vá tão fundo quanto eu. Alguém que receba a melhor notícia do mundo e fique pensando que aquele momento de felicidade vai acabar e sofra a alegria! Alguém que não consegue ter nem a dignidade de ficar triste por achar não haver motivo para tristezas, e que certamente está agindo errado!
Sim, essa pessoa sou eu, sadly (por quê essa idiotice de escrever em inglês?).
Passei quase o dia todo ouvindo Beatles. Isso me faz uma pessoa legal?! Vou aos Democráticos dentro de uma hora. Antes, encontrar um amigo. Vou beber, fumar e conversar,e essa parte será boa (sempre é). Depois de algum tempo, vamos entrar, meu amigo, a namorada dos sonhos dele, e eu. Ficarei ouvindo o bom samba, olhando as meninas, invejando os bons dançarinos e querendo ser alguém que não sou. Vou beber mais, fumar mais, tentar encontrar alguma diversão, forçar-me a dar em cima de alguém, ficar sem jeito e levar um fora que me deixará tão sem graça que passarei o resto da noite ensimesmado, sentindo-me um homem nu em rede nacional. O sentimento vai passar, vou fingir um entusiasmo para não estragar a noite (afinal, tenho que manter a aparência de "rapaz legal que sabe se divertir"), esperar as três ou quatro, pegar meu ônibus, me masturbar um pouco, e dormi meio grogue pelo efeito do álcool.

Amanhã não farei nada, e passarei a maior parte do tempo pensando no que deveria estar fazendo.Talvez na segunda acorde bem, estude alguns pares de horas e volte a me sentir bem.

Tem certas coisas que parecem que nunca vão mudar!

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Momento Twitter Insone

São duas e quarenta e uma da manhã. Uma madrugada de sexta. Não tem nada de bom na TV. Saudades do Clube da Criança Junkie. Maldita insônia! Já passei da idade de lamentar essas coisas.
"Sei de uma bárbara região cujos bibliotecários repudiam o vão e supersticioso costume de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão. Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas afirmam que essa aplicação é causal e que os livros em si nada significam." (Jorge Luís Borges, A Biblioteca de Babel)

sábado, 5 de setembro de 2009

Ego

Caravaggio. Narciso. 1597
[Na varanda do segundo andar do teatro, separada dos corredores internos por uma porta de vidro, a espera do início do espetáculo]

Pelo reflexo da porta espelhada, a enxergava sem ser percebido. Lia ou escrevia algo sentada no banco de madeira. Um rapaz interessado aproximou-se e começaram a conversar. Em pouco, estavam a admirar juntos o mesmo texto.

Pensamentos ruins me vieram, trazendo com eles uma certa amargura. Qual é o meu problema? Por que estou sempre tão sozinho? Gostaria que isso não importasse. Afinal, o que há de tão errado na solidão? O que há de errado comigo?

[Acende um cigarro. Em seguida sente um incômodo no pescoço]

Estou ficando velho. Estou me sentindo velho. Não! Estou me sentindo mal. Espiritualmente, no sentido vulgar do termo. Por que me importo tanto comigo? Ninguém liga, deveria me convencer. Por que ajo como se alguém se importasse? Por que alguém deveria se importar comigo? Preciso achar a minha pergunta filosófica, aquela que eu devo sempre pensar quando me encontrar numa crise existencial. Se vale a pena viver? Certamente não é essa. Talvez dê muito valor à vida.

[Encaminha-se ao banheiro, passando em frente ao casal que antes observava. Entra numa das cabines e se posta em frente ao vaso sanitário, que possui uma parede de mármore]

Esses pontos brilhantes(...) Podiam ser estrelas numa noite sem nuvens. Já vejo o plano! Seria uma belíssima cena. Mas qual o sentido? Metáfora? Sonho? Se fosse cineasta, seria daqueles criticados por dar mais valor à forma que ao conteúdo. Mas por quê deve haver um sentido? Por que uma imagem não pode ser só uma imagem? Não posso fazer pontos brilhantes de uma pedra de mármore virarem estrelas só para expor a beleza do movimento? O que faz a genialidade dos gênios? Será que alguém vai me convencer que é algo mais que a porra do acaso?

Lembro da idéia que tive uma semana dessas. Simplesmente genial, embora não original (George Orwell já a teve na minha frente). Uma estória contada em um movimento de câmera (vou dar o nome técnico de câmera subjetiva) só existe nos espaços interiores residenciais. O resto é captado por câmeras de segurança, de controle do trânsito, de empresas de transportes públicos, de elevadores! Se tem um sentido? Claro que tem! O sentido, primeiro, é a sensação cotidiana de estarmos sendo observados! É óbvio que o protagonista deve demonstrar um desconforto constante. Nada do que fizer no espaço fora do lar deixará de ser observado. O outro sentido? Psicológico, claro. Só se é um sujeito, um indivíduo dotado de sentimentos, valores, vida, dentro do seu espaço doméstico. Para o resto que capta sempre em meio a outros, o homem continua sendo mais um, só percebido se fizer algo que ultrapasse os liames da lei. Principalmente a lei defensora da propriedade – afinal, a maioria das câmeras que nos observam são de empresas privadas. Talvez um final no qual o indivíduo descobre estar sendo observado em sua própria residência. Algo como “A vida dos outros”. Genial!
Não, é idiota! Não tenho a estória, só a forma. É isso o que sou, só um estilo. Vazio.

[Passaram-se meia hora, alguém bate insistentemente na porta da cabine]

Tem sempre um filho da puta para importunar nossos pensamentos.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Automato

Salvador Dalí. Soft watch at moment of first explosion. 1954.

O despertador tocou às cinco e meia. As pernas foram para o chão na intermitência de alguns segundos. O ar povoou os pulmões num inspirar profundo. Os olhos semicerrados marejavam. A passos lentos, o corpo levantou-se, os braços pendulando mortos. Dirigiu-se ao banheiro. À meia escuridão, os pés fincaram parando a estrutura corcunda em frente a pia. A torneira aberta jorrava grande volume e as mãos em concha pousaram sob a torrente. Um movimento espinhal fechou o àngulo perpendicular encontrando as palmas. Após a fricção completa da face, os indicadores escalaram para os cristalinos, limpando assim as secreções que a noite depositara. Uma imagem delineava-se no espelho.


A luz projetando as cores da matéria me convencia: era a porra de mais um dia que começava.

domingo, 9 de agosto de 2009

Descobrimento

(Di Cavalcanti. paisagem colonial urbana. c.1950)

Desembarquei na Ilha de Salvador (acho que era esse o nome) com um rapaz latino que conheci no Continente. Os sobrados de cores vivas em primeiro plano logo me encantaram. Descemos umas escadas, e o rapaz – que era professor e vinha procurar materiais sobre a esquerda – ficou meio chateado com o câmbio alto do dia e a impossibilidade de converter suas notas para a moeda local. Assim que chegamos, perguntei pela violência – como se fosse comum - ao que fui respondido pela existência de tiroteios recorrentes. Em seguida, como que naturalmente após breve observação, indaguei sobre as pessoas negras, que parecia não enxergar o suficiente. Não me lembro de respostas, mas ouvir minha própria pergunta deu-me ciência de que estava numa ex-colônia escravista.


Caminhávamos um pouco ilha adentro, pelo meio de uma das inúmeras íngremes ruas de paralelepípedo. Havia um razoável vai e vem de pessoas, chegando e saindo do pequeno porto. Foi quando, nesse movimento, deparei-me com umas meninas negras conhecidas de outros espaços, com as quais conversei sobre coisas corriqueiras. Neste momento, olhando para o homem que me acompanhava, o descobri amigo de longa data, e conhecido daquelas meninas. Ele era negro também. Nos pomos todos em prosa.


O dia amanheceu ensolarado e saí de casa.

domingo, 26 de julho de 2009

PARANÓIA URBANA

É madrugada, e as únicas luzes acesas são as da tela do computador e a do corredor do andar, que transpassa a janelinha da porta de entrada. Chove e faz um frio ameno. Ouço os pingos caindo, o vento balançando as folhas da mangueira do terreno ao lado. Quando em vez, um barulho de fruta caindo.

Estou sem sono. Cafés, mais a maldita sesta. Todos dormem em casa. Tento fazer os olhos pesarem assistindo à filmes no computador. Não vou pegar em textos hoje. Amanhã acordo às oito. Ouço passos no corredor. Intermitentes, parecem se esconder. Chaves destravando a fechadura. A porta abre-se, fecha-se. Toda a madrugada é assim.

Um som é só um som. Seria bom acreditar. Passos seriam somente passos, se não me informassem diariamente as estatísticas sobre o aumento de assaltos às residências. Portas abrindo de madrugada significariam apenas a existência de pessoas com hábitos noturnos, se acreditasse que na vida não tenho nada a perder. As folhas a caírem das arvores seriam um inofensivo movimento da natureza, se qualquer bicho não domesticado maior do que a minha unha não me deixasse terrificado. A ameaça permeia o tecido do escuro e do silêncio.

Essa não é uma hora boa para passos e fechaduras. É contra o fluxo da vida, a ordem do mundo. Num prédio residencial à uma da manhã deve reinar o mais absoluto silêncio. Logo, sob a sugestão da solidão e da escuridão, sem às vozes costumeiras do dia, tudo é estranho, prenúncio de perigo, aviso para o medo. Onde deveria reinar a paz, ressente-se pela falta do conhecido e inofensivo, as vozes, o movimento e a luz. A cada ruído inesperado, um arrepio, um suspiro, um pulsar mais acelerado. O stress piora a minha insônia.

Resisto a cama, pois se existe algo pior que essa realidade de filme de terror, são os pesadelos que costumam me assombrar quando forço um sono inexistente. Acordar com o grito engasgado, com aquele fremido mais assustador do que o próprio pesadelo. Malditos cigarros, que me põem a dormir de boca aberta. Ficar acordado é uma opção entre os fantasmas do sonho e os que existem em cada ruído. Escolho o segundo, o que com o tempo, acabo por aceitar bem. Nunca nada acontece, apesar de sempre parecer que vai.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

sem título

A ausência de um horizonte
diferente desse estar
me faz sem forças
para em algo melhor pensar

Mas de vez em quando
aparece um incômodo,
quando percebo
a inércia do desejo
de querer outro lugar

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Emancipação

Era como se não houvesse o que esperar, e a passagem do tempo deixasse de ser um fardo, uma dor. Era como se cada momento vivido fosse o melhor até aquele instante. E era eu, tão somente, o responsável por aquela mudança. Não me perguntem como consegui alienar dos sentimentos a dor, a ansiedade, a angústia. Sinceramente não sei. De um instante para outro, adquiri o poder de encontrar o êxtase em cada nuance do presente imediato, e tudo além deixava de importar. O mais impressionante é que, na minha caixa de lembranças, estava tudo lá. O desejo pelas mulheres, pelo conhecimento, as imagens de paisagens bonitas que conheci e que gostaria de conhecer, as reminiscências palatativas, o gosto do chocolate, o prazer de fumar depois do almoço num dia frio. Não obstante, deixava de ser urgente, não mais ansiava desesperadamente. Era como se o dispositivo de acionamento da vontade tivesse sido tirado do automático, e o da admiração, contemplação, trabalhasse em sua mais alta potência. Este despertar me deixou perplexo. Estava realmente disposto a explorar este novo homem que nasceu naquela manhã de março.

Não havia pressa.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Desconstrução

Um homem beirando os sessenta, que passa dois terços de sua semana recostado numa ampla barriga, assistindo televisão e dormindo. Um homem sem amigos, que só se move num pequeno raio de distância, cujo maior prazer consiste em beber cerveja no bar mais próximo, quase solitário.

Eis a triste visão que tenho de meu pai. Talvez um olhar mais distante possa afirmar “Está aí um homem que não precisa de muito para viver”. Aceitar esta verdade certamente me faria uma pessoa mais feliz, se todo o dia não tivesse que topar com aquela coisa decadente, cabisbaixa, com medo do mundo e desconfiada de todos. Como poderia admirar essa figura masculina que faz da submissão da mulher sua fonte de subsistência, que se esconde dos desafios do mundo num código moral fácil, fundado em bem e mal, sucesso e fracasso, vencedores e perdedores?

Nem sempre foi assim. Dos vinte e cinco anos em que hoje me encontro, a maior parte foi de respeito e admiração imponderável por aquela figura. Era o lugar de autoridade, sempre incontestável. Era tão fácil... Mas a vida, embora totalmente sem sentido em si, me reservou desígnios distintos, levando-me ao conflito com aquele mundo de verdades quase matemáticas.

Nunca como nos últimos anos pensei tanto em meu pai. Pensamentos questionadores, que peca em vilipendiar aquela memória sacra que guardo em meu coração. Se antes sua potência imputava-me temor, a razão do medo agora encontra-se exatamente em sua antítese. O tamanho do meu poder ante o ídolo desconstruído, frágil, faz-me temer pela piedade. Porque apesar de tudo, o amor de um filho pelo seu pai é incondicional.

Por que é tão difícil sair dessa adolescência?

quinta-feira, 30 de abril de 2009

ILUSÃO

Imagino que por volta das três. Meia dúzia de homens bêbados vagando pelas desertas ruas de Niterói. Existe um destino, Oásis, nome sugestivo à circunstância. Um conhecido afiançara o nome para a entrada gratuita. De nada adiantou. Rateando por todos, garantimos uma cortesia. Cinqüenta contos e quinze latas de cerveja.

A casa está cheia. Luzes piscando, funk alto. Dor de cabeça e azia. Umas dez mulheres de lingerie tentam garantir a noite. Jackson está chato, me enchendo com um discurso hipócrita sobre a humanidade das putas e seus sentimentos. Afirmo-lhe a razão, mas pouco importa. Não é o momento, muito menos o lugar para reflexões profundas sobre a condição humana.

Estou enfastiado. Sentado no palco, olho para bundas e peitos nus, morrendo de tesão e sem um puto para saciá-lo. Bendita decisão de deixar o VISA em casa, penso com meus botões. Me sinto solitário. O ambiente tira a vontade de qualquer conversa. Era o que imaginava.

Saindo dos fundos do salão, uma morena alta, robusta , com um belo rosto, encosta-se numa parede próxima. A timidez me impede de dar-lhe atenção. Sinto um toque leve no lóbulo da orelha. Volto-lhe com um olhar gentil e um sorriso sem jeito. Novamente o mesmo gesto. Tomo coragem e puxo-lhe pela mão. Se chama Rossana, e me acha uma gracinha. Forjo uma risada irônica, dizendo-lhe que aquele elogio já valera pelo dia. Tapando a face com as mãos, a moça finge um enrubescimento, não sei se realmente existente.

Papeamos de forma amorosa. Digo-lhe palavras bonitas, elogiando a beleza de seus grandes olhos claros e brinco afirmando que, se pudesse, apresentaria-lhe à minha mãe. Demonstrando carinho, Rossana aconchega sua cabeça em meu peito, e sobrepõe suas pernas às minhas. Envolvo meus braços em suas costas, e ponho-me a acariciar seus cabelos. Com a outra mão livre, aliso a sua delicadamente. Sinto vontade de beijá-la. Sacando meu frouxo estilo, começa me prometendo namoro; depois beijos apaixonados; depois um boquete; depois o Céu. Digo que adoraria tudo, namorar e beijá-la, até o fim dos dias, mas que naquela noite seria impossível. Prometo-lhe um futuro próximo em que tudo se realizaria.

Sustenta-se um silêncio por alguns minutos, nos quais observamos a dança sexual das outras moças. Tento puxar novamente uma conversa, mas em vão. Diz que vai se maquiar, e elegantemente se dirige ao banheiro imundo. Não mais volta.

No decorrer da madrugada, cruzara com ela algumas vezes pela boate, sempre acompanhada de outros. Sabedor da impossibilidade de proporcionar a verdadeira satisfação aquela moça, não me sinto triste. Penso por alguns momentos na possibilidade de cumprir aquela promessa. Possivelmente, não fará a menor diferença para ela, que assim como brutos, deve conviver usualmente com tipos ingênuos como eu. Aproveito contente até a alvorada, saciado da ilusão de ter e ser amado, mesmo que por alguns míseros minutos.

domingo, 5 de abril de 2009

Lábios

Puxando-lhe o pescoço, toquei seus lábios
nunca provei suspiros tão doces.
Segurando-lhe as coxas, encontrei seus lábios
os agudos penetraram-me a espinha.
Havia descoberto a vocação dos meus lábios
Porém quando deixastes meus lábios solitários
eles só haviam de machucar
Por isso você foi embora, levando os seus lábios.
Peguei uma faca e então arranquei os meus,
pois neles só ficaram o que de pior há em mim,
O adeus dos seus lábios.

sábado, 28 de março de 2009

NOIR (PARTE 1)

A música dava uma boa atmosfera ao lugar. Na junkebox, Jamelão cantava Lupcínio Rodrigues,tristes letras de amores perdidos. No antro chamado Vila Mimosa, aquele era o único lugar realmente decente e agradável. Tinha sim cheiro de perfume barato, mas infinitamente mais suportável perto do odor sufocante de latrina que permeava os becos do mais famoso baixo meretrício do Rio de Janeiro.

Aquele pequeno cabaret não era mais luxuoso que os outros, mas era para mim como um segundo lar. Josefina no balcão não deixava que a minha tranquilidade fosse pertubada. Totalmente descomposturado, bebia a minha quinta garrafa de Brahma. No cinzeiro, dezenas de guimbas de Hollywood vermelho confirmavam o meu desejo de morrer antes da próxima década. Eram três horas e quinze minutos. Alguns velhos senhores também refastelavam na casa o fim de mais uma semana ordinária , viajando no anestésico dado pela cachaça. Era o único menor de 30 no estabelecimento, e me sentia de certa forma honrado por aquelas companhias e pelo status conseguido no recinto.

Madeleine, a puta mais nova do lugar, aprochegou-se:

- Oi gostoso?

Respondi com um aceno de cabeça mal humorado, sem dirigir-lhe o olhar:

- E aí, meu bem, pronto para um sexo gostoso?

Josefina percebeu que a importuna me desgostava:

- Madeleine, venha cá! Leve a bebida do Fogaça.

Claro que gostava de mulheres, e admirava intensamente aquelas que me cercavam naquele momento. As manchas em suas peles denunciavam que aquela vida não era nada fácil, ao contrário do que enunciava um dos inúmeros sinônimos para a profissão mais antiga do mundo. Submetiam-se aos mais ignóbeis e nojentos meliantes da face da Terra, e não havia escolha, aquele era o ganha-pão das moças. Exatamente esse respeito que me impedia de manter qualquer contato sexual com elas. Gostava de beber, ouvir as músicas do tempo de meu avô, sentir aquela tristeza degradante que me aquietava o espírito após o ritmo alucinante deuma semana de trabalho, e depois deixar sempre um dinheiro a mais pela noite sem maiores inquietações. Com a conduta aprovada, nunca pude reclamar de muita coisa.

Josefina devia estar pelos seus cinquenta e cinco anos. Quando jovem, deve ter sido uma bela rapariga. Tinha nariz e lábios finos à européia, e olhos capazes de enfeitiçar o próprio feiticeiro. Desde que abriu sua própria casa, abandonara a vida. Passara uma infância difícil em Nova Iguaçú, alvo das garras de um pai violento e um irmão molestador. Antes dos 15, já abortara duas vezes, ambas do irmão. Seu pai a arrebentou de pancada em ambas, debaixo de "vacas" e "putas". Se tornou uma não pela sugestão, mas porque não era sequer alfabetizada e aquele foi o único modo que achou de sobreviver. Os homens que aguentou durante toda a vida eram o paraíso perto do que acumulara de seu pai e irmão. Porém, mesmo debaixo de tamanha amargura, sobrara-lhe o gosto pelo vasto repertório musical dos anos 40 e 50, que ouvia da vitrola do seu pai sempre após apanhar. Tenho a impressão de que aqueles cantos de lamúria deram, de alguma forma, vazão a toda sua dor e sofrimento, contando estórias de homens que sofriam por mulheres. O que Freud diria de uma mulher que, mesmo tão oprimida pelo oposto sexo, encontraria consolo em vozes tão viris como as de Nelson Gonçalves e Orlando Silva?! Foda-se!

Próximo às seis, meia caixa e dois maços depois, saí enxergando mais do que devia, meio cambaleante, mas ainda pleno para caminhar até minha casa. Durante o caminho, dois vômitos voluntários, aprendizado de anos nessa vida. Às custas, cheguei ao meu "apartamento" na Barão de Iguatemi. Acordaria na tarde seguinte com a cama suja do estorno etílico e uma baita dor de cabeça. Há algum tempo atrás, ficaria moralmente abalado, pensaria em sair dessa, ficar saudável e levar uma vida digna. Com o tempo, acabei percebendo que o que chamam "dignidade" é somente mais uma forma de controle social, e achei nesse pensamento a verdade necessária para legitimar minha decadência . Infelizmente, não causava ameaça alguma ao sistema. Pelo menos era o que pensava.

domingo, 15 de março de 2009

Esboço

(Numa sala iluminada pelo sol da manhã, emerge da escuridão um jovem cabisbaixo, de olhar tristonho e com os braços recolhidos junto ao corpo. Sem encarar diretamente a platéia, o rapaz começa a falar.)

De vez em quando, alguns pensamentos me invadem, me corroendo por dentro. São sentidos fisicamente,como se algo estivesse devorando-me o peito. Sinto vontade de extirpar essa chaga que me impede o bem-estar. O sol brilha lá fora, e seus raios adentram a janela. Repugno a vida imersa na claridade invasora, quero ter amigos, estar e gostar de praia, ter o que fazer, algo com o que ocupar a cabeça. O máximo que consigo é acender um cigarro. (Tira do bolso um maço e acende um cigarro) Minha dor e a minha juventude se esvaem a cada tragada, entorpecendo meu cérebro, roubando-me o fôlego. O ponteiro menor do relógio encontra-se quase estabelecido no onze.As horas não passam, mas mesmo assim o tempo é cruelmente rápido. Deus! Vinte e cinco anos. A vitalidade se esgota entre baforadas e lamentações, e nada realizei ainda! Faltam-me palavras para articular a vida. Tantos pensamentos que não encontram expressão na língua nativa. Deveria ter nascido em outro país. Quanta estupidez!! Será que é muito cedo para recomeçar tudo de novo? Tudo vale a pena quando a alma não é pequena, dizia o poeta. Será que a minha alma, cheia de medos e recalques, presa nos horizontes sociais de sucesso e fracasso, é pequena? O que vale a pena?
(Uma claridade mais intensa impele o rapaz novamente para a escuridão, dando as costas para a platéia e saindo de cena.)

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Estórias para adultos

(Os personagens dessa estória são meramente ficcionais, e qualquer possível semelhança trata-se de uma mera e infeliz coincidência)

Durante minha infância, o mundo se movia de forma distinta. Parecia que todos eram aquilo mesmo que aparentavam e que não havia nada a mais. Quando aparecia algo que perturbava esse equilíbrio, como uma morte, era um choque, algo que punha em xeque o que estava em harmonia. Mas logo o jogo de videogame, um gostoso sorvete ou o episodio inédito dos Cavaleiros do Zodíaco trazia de novo as coisas para o seu devido lugar. E tudo era novamente uma brincadeira, para não ser compreendido e levado a sério.

Assim, muitas coisas ficaram mal-resolvidas em minha vida. Postas no campo do proibido, do intocado, do que era o mal. Não posso negar que também sempre me faltou coragem para querer realmente superar essas barreiras. Fui criado tendo na escola, nos esportes que praticava nos clubes perto de casa, na pracinha onde brincava nas manhãs de domingo, os únicos lugares permitidos para fazer amigos, e mesmo assim sobre o olhar atento de ¨responsáveis¨. Ficava a maioria do tempo entre as quatro paredes do meu apartamento, driblando com a bola de futebol os móveis de casa, jogando o meu Dynavision, assistindo a filmes de Sessão da Tarde e seriados de tv. É incrível o que essas tecnologias e mídias podem fazer com as crianças.

Tudo o que fosse possível para evitar o constrangimento, o conflito, o mal-estar, a dor. Essa foi a fórmula que, inconscientemente, aprendi em casa e levei para a vida. Cresci assim. Sempre fui um moleque inteligente, que aprendia rápido as coisas na escola e passava de ano sem recuperação, mas que no resto, e verdadeiramente importante, era um desastre. Tinha medo, de me declarar para uma menina, de enfrentar os meus pais, de fazer as coisas erradas (e provar se elas eram mesmo erradas). Nunca matei aula para fumar, tomar vinho ou ir aos jogos do Vasco.

De todas as minhas covardias, as maiores foram àquelas relacionadas à expressão de sentimentos. Quando era criança, beijava os meus pais, meus avós, meus padrinhos, mas sempre foram beijos de formalidade. O afeto sempre me foi alheio e não aprendi a expressá-lo direito. Quantas meninas não deixei passar por vergonha de mostrar-lhes o que sentia?! E sobressaí hoje essa aparência da pessoa fria, meio sem jeito, meio mongol, sem iniciativa, exatamente porque nunca me arrisquei, nunca me lancei sem medo em nada. Ainda tenho vergonha de beijar o meu pai, e não consigo chama-lo para uma cerveja pois existe algo dentro de mim que me embaraça em assumir o hábito de beber. Eu tenho vinte e quatro anos.

Porém, a infância não me guarda somente coisas tristes, ou explicações originárias para as minhas atuais frustrações. Se existem coisas que, mesmo depois que crescemos, permanecem num lugar intocado, outras acabam se desmistificando. Sabe, quando fui ficando mais velho, a minha família começou a ficar chata. Não havia nada de interessante, somente estórias de casais perfeitos, de filhos bem criados. Aos poucos, porém, os "podres" começaram a aparecer, e pude perceber que a minha família era bem mais interessante do que eu imaginava.

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A nostalgia é o passado que se faz presente e determina nosso futuro. (Alfredo Bryce Echenique)

Morei durante dez anos da minha vida no apartamento oito-zero-quatro do número três-sete-meia da rua Hadock Lobo. No quinto andar, morava a irmã da minha avó, a tia Arlete, a quem chamava de Dinha (apesar de não ser a minha madrinha de fato). Junto com ela, morava o meu padrinho (de verdade), a quem todos sempre chamavam de Quinha (e só mais tarde me dei conta de que não era esse o seu nome), e o esposo dela, o tio Hélio. Apesar de serem todos velhos, o apartamento da Tia Arlete foi o lugar no qual mais me diverti durante a minha infância. Quase todo o dia, à noite, descia lá com a minha avó, e ficávamos todos na sala, enquanto as novelas da noite passavam na TV. Sentado na cadeira de balanço, conversava em altos brados com o meu padrinho, ouvindo atenciosamente suas estórias de bravura em Sumidouro- cidadezinha próxima à Nova Friburgo, onde crescera- e de sua breve passagem pela Aeronáutica. Eram estórias de brigas - por mulheres e por orgulho - de caçar animais e passarinhos com armadilhas e espingardas de ar comprimido, de grandes pescarias no Paraíba do Sul, de pegar peixes do tamanho de canoas e enfrentar a nado as correntezas do bravo rio. Sempre prometia me levar à Sumidouro para vivermos grandes aventuras, e sempre sonhei com esse dia.

Não, ele nunca chegou. Quando tinha oito, ou nove anos, Tia Arlete morreu. Poucos meses depois, Tio Hélio e Quinha se mudaram para um apartamento no mesmo bairro, mas longe o suficiente para uma criança superprotegida ir visitar. Mais ou menos um ano depois, também mudamos, só que para São Cristovão. Durante algum tempo, Quinha ainda ia me pegar para nossas tradicionais pescarias no Aterro do Flamengo (às quais adorava, apesar de não pegar mais do que um peixe e ficar dias com a pele queimando por causa do Sol), mas essas saídas ficaram cada vez mais escassas. Os anos se passaram, e também aquela idolatria de criança. Por causa do problema de alcoolismo de Tio Hélio, o filho foi obrigado a mandá-lo para um asilo. Sem ter onde ficar, Quinha voltou para a sua terra natal. Depois de um certo tempo, ele passara a apenas mais um parente com quem às vezes falava no telefone.

Cinco anos depois, saímos de São Cristóvão e voltamos a morar na Tijuca. Num dia desses, sem nada de especial, veio a notícia, com a mesma banalidade do dia. O filho do Tio Hélio ligou para nossa casa, e informara, no meio de outras notícias, que o meu padrinho havia morrido, não naquele dia, mas há meses atrás. Minha avó me deu a notícia, a qual reagi com indiferença, pois aquela morte era de alguém que há muito havia se desligado da minha vida, que não era mais importante. Mas hoje, bons anos depois, nessa exata madrugada do dia vinte e cinco de janeiro de dois mil e nove, posso afirmar uma ponta de revolta, com a aparência de hipocrisia, mas profundamente nostálgica. Aquele homem fora o herói da minha infância, o avô que não tive, quem me forneceu a matéria-prima para imaginar algo além da minha realidade alienada, e ele morreu assim, num dia qualquer, num leito anônimo de hospital público, sem lágrimas, sem ninguém para lhe dar o aconchego do último momento. E a mim foi privado sentir essa morte, tanto pelas circunstâncias físicas que me afastavam daquele lugar e daquele homem; quanto pelas circunstâncias fornecidas pela vida, que afastavam todo o meu afeto. Alguns caminhos tomados pela vida são realmente injustos e tristes.

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Se o apartamento da tia Arlete fora um lugar de muitas alegrias durante a minha infância, ele também escondia segredos inconfessáveis para uma criança. Essas estórias só me foram contadas muito tempo depois, e dosadamente, à medida que ouvia algo escapar furtivamente e perguntava sobre o assunto. Já na idade certa de saber as “coisas sujas”, o esmero familiar em omitir certas informações havia desaparecido.

Nunca fui de indagar as razões de Tia Arlete, Quinha e Tio Hélio residirem juntos. Afinal, Quinha era meu padrinho, logo parente, então era como se o lugar dele não precisasse de justificativas. Tudo era tratado com tanta naturalidade, que realmente parecia que não havia nada de errado, ou imoral, naquela relação. Mas a vida é bem mais complicada e interessante do que um mero quadro de relações de parentesco.

Vou tentar reconstituir os fatos através dos detalhes esparsos guardados pela minha memória, recolhidos dos diversos relatos de minha avó, meu pai e minha mãe. Não sei ao certo datar quando essa estória começa, mas creio que seja por volta de meados dos anos 1950. O irmão da minha avó, o falecido tio Ricardo, conhecera aqui no Rio de Janeiro uma mulher chamada Zezé, apaixonou-se e casou-se com ela. Zezé tinha também uma estória enrolada, era dada a trambiques e gostava muito de homens, mas o que nos importa agora é saber que a sua família era de Sumidouro. Assim, para os parentes do Tio Ricardo, a cidadezinha interiorana passou a ser um lugar para visitar, não sei se somente a passeio, a trabalho ou para férias prolongadas. Um fato curioso dessa ligação com Sumidouro é que a maior parte das mulheres ligadas à família de minha avó começou a recrutar, entre a população muito pobre e iletrada sumidorense, pessoas para trabalhar como empregados domésticos. Posso dizer, pelo menos do que já ouvi, que era algo quase como trabalho escravo, e à época que tomei conhecimento dessas coisas, fiquei bastante revoltado.

Fechando os parênteses, Tia Arlete e a minha avó – ambas casadas – também começaram a visitar Sumidouro. Meu avô, em seu trabalho de costureiro, ganhara muito dinheiro por lá, na venda de roupas confeccionadas por ele. Sobre a Tia Arlete, não sei de que maneira isso ocorreu, também não tenho provas suficientes para provar o que aqui escrevo, mas dizem as más (ou verdadeiras) línguas, que se apaixonara por um jovem rapaz, de nome José Soares.

Vieram para o Rio de Janeiro, e o mancebo sumidorense veio junto. De acordo com estórias de infância de meu pai, posso presumir que José Soares já morava naquela época, décadas de 1960 e 1970, com a Tia Arlete e Tio Hélio. Trabalhara em fábricas e no aeroporto do Galeão, e em muito desses empregos, Tio Hélio e Quinha foram companheiros. Era engraçado, pois quando criança, ouvia muitas estórias de compadrio entre ambos, com um certo ar nostálgico, de boas pescarias e ¨causos¨. Mas outras, ouvidas posteriormente, narravam a rotina de um triângulo amoroso formal, marido, mulher e amante, vivendo sob o mesmo teto, onde o amante tinha o melhor prato de comida e outras preferências. Essa situação era flagrante na própria compleição física e no comportamento de ambos. Tio Hélio, desde que me entendo por gente, sempre foi franzino, curvado, fumava feito um condenado e bebia mais ainda. Já Quinha sempre teve um belo porte, mesmo depois de velho, era bem disposto, gostava de exercícios físicos, não tinha vícios e estava a toda hora fazendo alguma coisa. Um era encolhido e tímido. O outro, exaltado e brincalhão. O marido humilhado e o garanhão, respectivamente aparente.

Ficara sabendo somente de uma confusão em todo o tempo de três-sete-meia, no qual a minha madrinha de verdade, irmã de meu pai, brigara com a Tia Arlete, e a chamara, para todo o prédio ouvir, de “Dona Flor e seus dois maridos”. Não saberia dimensionar a repercussão desse caso, e talvez por ter sido uma criança muito tapada e presa, não percebesse os murmurinhos em volta. Mesmo dentro da minha família, extremamente conservadora, nunca ouvi um único comentário sobre a tal imoralidade do quinto andar. Pelo contrário, Quinha sempre foi um homem muito respeitado e querido em nossa casa, tanto que sempre existiu uma confiança em meus pais de deixar-me ir com ele aonde quisesse. E apesar das considerações que fiz anteriormente, sobre posturas estereotipadas, o clima na casa deles também fora sempre de muita leveza, de um grande cuidado e fraternidade entre eles.

Quando a Tia Arlete morreu, Tio Hélio e Quinha continuaram a morar juntos, e assim conviveram por uns bons oito anos, sem peso, somente as costumeiras discussões de casal. Uma relação não convencional que durou uma vida. E eu, que sempre achei que o Tio Hélio fosse morrer antes do Quinha, me enganei. Tio Hélio continua vivo, embora não muito lúcido, numa casa de repouso na rua Santa Alexandrina. Fazia visitas ocasionais, nos fins de semana, que foram diminuindo gradualmente. O único não-judeu do lugar. Uma solidão imerecida.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Primeira Infância

Hoje é feriado de São Sebastião aqui no Rio de Janeiro. Esse dia me trás a cabeça algumas estórias de minha primeira infância, contadas e recontadas em casa durante toda a minha vida.

Esta poderia ser uma estória de negligência médica terminada em mais uma morte inocente. Se entendi bem, assim que nasci, os médicos esqueceram de retirar-me o líquido amniótico, ou placenta, que geralmente fica dentro dos bebês após o parto. Como todos aqueles que curtem o primeiro filho homem, meu pai olhava-me no berçário, e então percebeu que havia algo de errado. A minha cor estava mudando, a pele ficando roxa e a respiração fraca. Desesperado, gritou pelas enfermeiras. Mais alguns minutos, teria morrido sufocado.

Alojando-se nos pulmões, o líquido fez-me desenvolver um quadro de pneumonia. Com a saúde precária de um recém-nascido, havia risco de morte. Por essa ocasião, meu avô fez uma promessa a São Sebastião, prometendo, em troca da preservação do seu neto, levar-me todo o ano a Igreja dos Capuchinhos, no feriado do santo, vestido inteiramente de vermelho.

Não sei se por causa da promessa, mas hoje estou aqui para contar esta estória. Meu avô morreu pouco mais de um ano após o meu nascimento. Não teve a oportunidade de viver para cumprir a sua promessa, mas lembro-me vagamente, em reminiscências, de ser levado a Igreja em um certo dia do ano, de muito calor, vestido com um blusão vermelho de botões. Não me recordo direito quem me levava, mas possivelmente era a minha tia-avó, que cresci chamando de madrinha (apesar de não ser, e talvez aí encontre-se a razão de assim chamá-la) e esse ritual deve ter sido cumprido até os meus cinco ou seis anos de idade.

Outra das estórias de primeira infância diz respeito ao leite que me nutriu. Por motivos que até hoje desconheço, o leite da minha mãe secou. Durante meses, fui indiretamente amamentado pelo leite de outras mulheres, destinado a outros filhos e filhas, conseguido pelo esforço de um tal Seu Flávio. Ouvi sempre, com um doce tom de gratidão, que ele botava o morro do Turano abaixo atrás de leite para mim. Esse generoso homem era nosso vizinho quando morávamos no 376 da Hadock Lobo, mas cujo rosto não me recordo, pois cedo se separou da mulher e foi embora de casa.

Dessas mulheres, somente duas entraram na minha vida de alguma forma. Uma, porteira de um prédio na Hadock Lobo, negra, pobre, moradora do morro do Turano, fumante. Sempre passo por ela, sabendo quem é, mas indiferente, como se fosse uma pessoa qualquer. A outra, de nome Sueli, também muito pobre, também moradora do morro, também negra, também fumante, tem uma penca de filhos e viveu metida com bandidos. Trabalha como faxineira nas casas da classe média tijucana, e visita eventualmente a minha residência. Sua figura não me agrada, é arrogante e tem um jeito grosseiro de se expressar, além de estar sempre interessada em dinheiro ou algo a ser dado, o que gasta com cervejas em alguma birosca de favela. A essas mulheres, devo o meu primeiro alimento. Qualquer outra possível relação é uma mera questão de fé.

Nasci no dia treze de maio, num domingo de dias das mães, de Nossa Senhora de Fátima, da Abolição da Escravidão, e principalmente, dos preto-velho. Todo o ano, vovó põe um copo do primeiro café desse dia na janela, que lá fica até o primeiro café do dia seguinte ser feito. É uma crendice que me causa uma grande simpatia, e se não produz efeito algum, mal também não pode fazer. É o nosso cristianismo de superfície, como lamentaria Sérgio Buarque de Holanda e celebraria Gilberto Freyre, que se nos impediu de desenvolver uma fé interior, uma aescese na própria vida, nos guardou esse paganismo bonito, de relações pessoais e quase afetiva com os santos. Mas essa é outra discussão.

Na minha primeira infância, meu pai foi herói, meu avô mártir, bebi do leite de negras e fui salvo por milagre. Uma típica mitologia brasileira.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Sem título

Não quero rosas nem utensílios domésticos
só quero a flor que brota do seu corpo
e com o que você chama de amor
vem me oferecer.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Radiografia Panorâmica da Face

¨Mulheres grávidas ou com suspeitas de gravidez: Favor informar ao profissional antes do exame.¨ Portaria 453/98 (M.S)
A sala da clínica radiológica é minúscula. Tapumes demarcam o espaço físico do lugar, dividindo a sala de espera da de exames e da recepcionista. A sala de espera possui quatro cadeiras com aparência de novo, um estofado plastificado, estampado com figuras parecidas a hieroglífos. O chão é de azulejos quadrangulares, com uma cor parecida com bege. As paredes são brancas e um grande vaso de plantas ornamentais decora o lugar, alocada num canto. Ao lado dos assentos, revistas estão cuidadosamente organizadas em pastas abertas de material transparente. A televisão está sintonizada num programa de variedades matinal, daqueles assistidos por donas de casa. Sobre uma bancada acoplada à parede , um filtro de água moderno, com opções de água gelada e natural. Embaixo da prateleira, um recipiente de lixo, para o depósito dos copos de plástico utilizados.
A recepcionista, apertada num minúsculo espaço, senta-se ao lado de prateleiras cheias de pastas etiquetadas - com o nome de planos odontológicos impressos- e materiais de escritório. A moça sentada é uma loira oxigenada, razoavelmente acima do peso, com grandes argolas prateadas penduradas nas orelhas. Sua aparência é austera, sem sorrisos, com a formalidade necessária ao seu ofício, mas sem a simpatia de quem aparenta gostar do que faz. Ser secretária de uma clínica de radiologia oral certamente não é um projeto de vida muito agradável de se cultivar. Também, segunda-feira, nove e pouco da manhã, o início de uma longa e tediosa semana de trabalho....Não deve ser fácil.
O exame é exótico. Aloca-se o queixo e a testa numa determinada posição, a coluna mantém-se ereta. Posiciona-se os dentes frontais de maneira que fiquem aparentes, mordendo-se um pequeno pedaço de isopor e segurando a língua no céu da boca. A radiologista, uma simpática morena de altura mediana, orienta o posicionamento correto, manipulando com as mãos minha cabeça e corpo. Seus seios encostam de leve no meu braço esquerdo. Um espelho a frente da face me faz enxergar a imagem grotesca de minha boca, contorcida, como que amordaçado. Hannibal Lecter em Silêncio dos Inocentes. Um módulo circula o crânio, fotografando a arcada. Não há dor. Cinco minutos depois, o carbono fica pronto. A radiografia está bem clara, o serviço fora bem executado.
Não há câncer, por enquanto. Os sisos inferiores estão completamente deitados. A cirurgia será complicada.