quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Carta ao pai ou a poesia possível

Meu filho, me perdoe, pois pequei. Menino, você não soube crescer. Não te deixaram cair quando necessário. Você sempre teve medo de cair. Sem a dor, te restou o sofrimento. Onde aconteceu a derradeira fatalidade que te encaminhou para esta vida sem sentido? Onde foi parar a sua vida?

Meu filho, me perdoe. Você, que nunca amou, que nunca soube amar, sempre quis o amor. Mas nunca lhe ensinaram a dor necessária à liberdade, ao amor.

Meu filho, me perdoe por te exigir que fosse homem. Por quê não te deixei crescer sem ser homem? Não se cresce homem, se cresce menino. Para o menino, não há limites. É necessário ingenuidade para amar. Mas te ensinei a desconfiar, a ver maldade em tudo, a temer demais. Te ensinei Deus e o diabo quando deveria dizer apenas “vá”, e quando doesse, não lhe dissesse que era dor, que era ruim. A barata não é má, o rato não é mau, a lacraia não é má, os vermes não são maus.

Lembro da boa sensação que tivestes das ondas do mar. Quando derrubado, levantou, quase  querendo cair de novo. Não tinhas medo de se afogar, e por não saber o perigo, só havia o gosto salgado da água, os risos fáceis de pegar jacaré, o carinho áspero da areia molhada.

Não sabias o que era solidão. Foi quando te disse desse perigo que começastes a sofrer. Perdestes a dor, o choro fácil. Afinal, chorar não é coisa de homem. Maldito homem este que criei pra ti, que matastes a vida.

Meu filho, me perdoe por ter te ensinado a pena, e não a compaixão. Te fiz sentir superior, olhar os outros de cima. Por não viver, por não sentir de fato a dor que nos aproxima, te tirei a necessária miséria ao corpo que vive. A soberba que te ensinei só lhe trouxe a vergonha, o pudor, a tragédia.

O sentido, meu filho, está na liberdade que te tirei quando te privei de descobrir.

A vida começa na dor, meu filho, este era o ensinamento que deveria ter te dado primeiro. Mas quis evitar o sofrimento de minha responsabilidade sobre ti, e por isso te matei a vida.

Tua primeira inocência perdestes no corpo. Aprendestes a noção mais  feia do belo que existe. Um corpo que vive sempre será belo. Quando te disse “isto é belo” à primeira imagem por achar necessário serdes homem, destruí teu senso estético.

Também aprendi tarde demais.


Me desculpe. 

domingo, 23 de agosto de 2015

Gabriela

Aceitei a morte ao escolher amá-la. Não me importei com nada mais e abandonei toda a moral com que fui criado. Ao assumir o desejo, preferi não mais saber ou querer saber. Apenas queria, e bastava. Abracei e beijei a maldade com força e intensidade naquela mulher. Amei minhas trevas, e descobri que esta é a forma mais profunda de amor.

Pela primeira vez me entreguei e fui feliz. Relaxei como deve quem morre de verdade. Foi então que a vida começou.

sábado, 6 de junho de 2015

Amargo

O amargo não é fácil. O amargo tem presença. Apreciar o amargo exige o esforço e a paciência necessária para as coisas que valem a pena.

Alguém disse um dia que o amor é doce. Não há nada de doce no amor porque é difícil, e atinge o que há de mais profundo em nós.

Não é fácil apreciar o amargo, mas quando aprendemos, nos sentimos de fato vivos. O amargo não enjoa, queremos mais, e o copo de cerveja não fica vazio durante toda uma noite.

Habituar-se ao amargo da vida pode ser embriagante.

Exercícios de Loucura

Os ponteiros tortos do relógio percorrem na disritmia dos corações enfartados.
Os passos em sentido contrário rumam o descaminho das perdições. Para partirem a chegada, chegam à partida.
As coisas representam os nomes, o que torna a comunicação tão real e infinita quanto a vida.
A textura do amargo tem o som escuro das noites sem lua.
A mulher amada morde de felicidade a dor do parto.

Tudo é tão grande que nada me sobra, simplesmente.