quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Reflexões natalinas

Pena, caneta, máquina datilográfica, computador. O esforço físico implicado na escrita foi, com o passar dos tempos, tornando-se menor com o advento de novas tecnologias. A mudança do meio material trouxe inovações interessantes nas formas e nos estilos. Por exemplo, com o texto em tela, a estrutura pôde ser transformada com simples CtrlVs e CtrlCs, testando-se muito mais facilmente inúmeras arrumações distintas da narrativa original. Tais procedimentos demandariam bem mais trabalho àqueles que tinham ou têm em mãos somente tinta e papel.

Porém, sou pessimista nesta questão. Se antes o risco e o rascunho deixavam os rastros do pensamento do autor, a borracha, o corretor líquido e o “delete” apagaram definitivamente os simples erros ortográficos, de concordância, de memória e o que é pior, aqueles caminhos do texto que foram deixados de lado pela mente criativa, talvez tão sublimes ou originais quanto a narrativa vencedora. Num obscuro futuro, os e-books tornarão os traços censores inacessíveis, e possivelmente daqui a poucos anos, haverá uma dificuldade muito maior em estudar o percurso feito por um autor na elaboração de um texto.

Embora as transformações dos instrumentos materiais de escrita estejam destruindo uma parte essencial da criação – a dificuldade, o esforço e o aprendizado dos erros – essa é somente uma pequena parte das mudanças do ato de escrever. E aqui não trato somente de literatura, mas da principal função da língua e sobre a qual ela se constrói: a comunicação. As formas instantâneas criadas com o advento da internet tornaram a comunicação escrita numa coisa vulgar, desinteressada. Falo enquanto alguém que algum dia enviou cartas. Lembro-me (foi ainda nessa década) do esforço que era escrever uma carta (pois embora exista o meio, faz tempo que não o utilizo). Demandava concentração nas coisas a serem escritas, um cuidado no uso das palavras. A dificuldade que implicava o envio da carta diminuía enormemente o espaço para erros, mal-entendidos. Também era necessário um esforço maior de memória para dizer tudo que havia para ser dito (e sempre ficava faltando algo). Escrever cartas para alguém era não só um importar-se com o destinatário, mas também um sofrimento relacionado à leitura e a resposta daquele. Havia sentimento, drama, profundidade, vida. Com os e-mails, esse importar-se deixou de existir. Não existe mais a impressão ultrapessoal do desenho das letras, de uma mancha de café, de um pontinho de sangue ou catchup que tornava aquela mensagem um registro concreto da expressão de um momento único no tempo.

Nesse final de ano, as mensagens coletivas me importunam. Demonstrar sua afeição e seus bons agouros nesse momento tão simbólico de nossa cultura tornou-se algo impessoal, uma mensagem pronta e protocolar, sem qualquer significado. Não que algum dia tenha me importado muito com isso. Mas era diferente receber cartões de Natal. Sim, eram mensagens prontas de fim de ano, mas havia um mínimo de esforço, em imprimir sua assinatura com tinta de caneta, levar os cartões ao correio. Lembro-me que os cartões eram adereços tão importantes da árvore quanto as bolinhas e as pequenas esculturas. Hoje, a árvore está vazia de cartões de Natal, somente as empresas lembram-se de mandar felicitações via papel. Realmente algumas coisas passam a importar à medida que sentimos a sua ausência, ou talvez seja uma mera nostalgia boba.

Enfim, escrevo segundo meu estado de espírito. Escrevo a partir de uma personalidade que tem dificuldades imensas em socializar-se e que abomina formalidades. Se por um lado a tecnologia tornou possível o contato de pessoas de ambos os lados do mundo; por outro afastou as próximas. E se a dor é o pressuposto do alívio, a sensação de proximidade, muitas vezes, nos impede de sentir saudade, ou de dar valor ao encontro presente. Que absurdo não é envolver-se amorosamente por alguém que se conheceu através da internet, de um perfil? Reconheço que alguns realmente dão certo, mas o que estou falando é da integralidade de uma relação. Não se relaciona somente por palavras, mas por olhares, por expressões corporais, por um tom de voz com uma afetação diferente, que expressam expectativas, tensões, constrangimentos. Isso é único e insubstituível, mas cuja comodidade das inúmeras opções disponibilizadas pela tecnologia tornam cada vez menos valorizados, ou perceptíveis. O perfil diminui a possibilidade da frustração, assim como dos encantos mais surpreendentes.

A comodidade que a técnica e a tecnologia proporcionam tem tornado não somente o ato de escrever uma coisa vulgar, mas também a relação entre as pessoas. Não esforça-se para escrever melhor, não se reflete sobre as formas de se expressar, não se valoriza a relação com a escrita e logo com o outro. Relaciona-se com mais pessoas, mas essas relações são cada vez mais superficiais, instantâneas, vulgares. Empobrece-se a escrita, empobrece a comunicação, empobrecem-se as pessoas, empobrece-se a vida.

PS: Este texto foi escrito diretamente no Word 2007

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A História, o passado e a cultura

Na realidade, a única coisa que nos oferece a História é uma certa idéia de um certo passado, uma imagem inteligível de um fragmento do passado. Não é nunca a reconstrução ou a reprodução de um passado dado. O passado não é dado nunca. O único dado é a tradição.(...) A imagem histórica surge quando se indagam determinadas conexões, cuja natureza se determina pelo valor que se lhes atribui. (Johan Huizinga, El concepto de la historia y otros ensayos, México, Fondo de Cultura Económica, 1992, p.91.)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A criação do mundo

Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas. Luminosos uns, brumosos outros, e todos singulares. (Miguel Torga, A Criação do Mundo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, p.11.) 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Tempo

O tempo é um peso que pesa concreto
nessa necessidade de me manter vivo
ou nesse medo de viver.

Um cigarro, uma fome, a libido
Alívio que se confunde com prazer.
Precisão de fumar, de comer, de gozar
De consumir a saciedade dos minutos.
Logo, com as horas, me canso
Desse árduo trabalho de preenchê-las.

Outro dos meus vícios, talvez meu pior
são aqueles pensamentos
em que vivo a vida que gostaria,
Limitando a vida possível,
aquela dura realidade das relações,
cujas frustrações me furto,

Assumo assim minha vocação para o medíocre,
Por não conhecer, e querer, nada muito além
daquilo cujo mínimo risco e esforço me faz permitido.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Circe

Existe um território muito bem conhecido. Ele proporciona tudo aquilo que se deseja, e este é o problema, o maior problema. Não há um horizonte para além do que o desejo sustenta, para além do que é nele consumido.


O que há adiante é desconhecido, os mares tenebrosos nunca navegados trazem consigo uma sensação de vazio imenso.

Quais olhos?

Aquiles sonha com sua Penélope todo dia.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Quando as palavras brotam...

“Você é tão bonita que parece uma mentira.”


Essa frase me apareceu nos pensamentos, sem quaisquer referências concretas de inspiração. A beleza da construção me fez desejar dizê-la, afinal, é para isso que as palavras foram feitas. Mas o que comunicaria com isso? Para quem? E se me perguntassem o sentido da afirmação? Não saberia dizer, realmente. Por outro lado, se buscássemos sempre o que queremos exatamente dizer quando dizemos, não diríamos nada.

“Não sei. Só te vi e senti vontade de dizer-te.”

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Novamente a tristeza

Colocou a sua melhor roupa. Foi para o baile disposto a ser feliz por algumas horas. Sorriu, bebeu e dançou como nunca tinha dançado. Por algumas horas, chegou a acreditar na felicidade, mas o baile sempre termina.

Em casa, o cianureto o esperava ao som de um bolero.

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Talvez o segredo seja não esperar muito da vida...

sábado, 14 de agosto de 2010

A hora do cansaço

"As coisas que amamos
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade."
 (Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Cansaço)

Hoje estou triste, mas estou bem, porque esta tristeza me faz querer dizer algo. Uma calma de espírito do que não se pode evitar (ou antes fazer) me toma, e a pena repousa tranqüila na mão.

Eu queria que você fosse minha, mas isto vai contra os meus valores. Por isso, prefiro que vá embora, mesmo que me sacrifique por isso. A cada vez que você se vai, mesmo que brevemente, é como se levasse um pedaço da minha alma. É diferente dos amores amigos, meu amor amante. Quando aqueles se vão, deixam também um pedaço deles, e sei que, mais dia menos dia, voltam para buscá-lo e devolver o que de mim levaram (e mesmo quando não voltam, o que deixam nos basta). Eles deixam lembranças e nostalgia; você, saudades e melancolia.

Infelizmente, sou antes poeta do que homem, mais de palavras do que de ações, e por isso peço perdão. Um pobre poeta, que não sabe encontrar palavras para seus desejos, ou antes as furta temeroso da interpretação. A quem engano, o que sou de verdade é um metafísico medíocre. Se agora escrevo, é para dar vazão as minhas especulações, e reiterar um hábito de pensamento e sentimento. Escrevo para informar minha impotência, minha incapacidade para te amar – ou antes para poder amar com você - pois mesmo se hoje te encante com palavras bonitas (as quais você é a inspiração), não será sempre que as terei, e a maior parte do tempo serei mais um motivo de insatisfação do que de alegria. Os dias passarão, e tudo acabará. Não guardaremos nada um do outro, a não ser o rancor e a indiferença, e somente digo isso porque assim meus pensamentos se encadeiam e no final é como a estória termina.

Espero um dia saber viver o amor e o desejo, a frustração e a rejeição, e que estas sejam palavras de momento. Ser livre para te invadir, mesmo que depois me expulses. A parte de mim que você leva a cada vez que se vai deixo nesse texto, do qual lamento me despedir nesse instante.

sábado, 7 de agosto de 2010

Gostaria de morrer uma vez, só para saber como é. Uma pena que a morte não pode ser uma experiência. Possivelmente, se fosse, me viciaria em morrer. 

Mas é o fim de todas as experiências. Então, contento me com as do século mesmo.
Enquanto isso, vou vivendo...

sábado, 24 de julho de 2010

Já passou da hora de largar as muletas

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Outros olhos

Às vezes, quando menos percebemos,a voz alheia nos alerta para o caminho que estamos seguindo. Então, tomamos consciência de nós mesmos, nos refletindo sobre a nossa construção (ou projeção, o que possivelmente não é muito diferente), enquanto sujeito, enquanto identidade.

Mas isso somente ocorre aos espíritos abertos ao outro, para aqueles que não se consideram como essência pura, e sim enquanto um animal social. Até porque o que há de mais sólido em nós somente ganha consistência quando posto à prova da relação.

Precisamos sempre de outros olhos para conseguirmos nos observar realmente.

domingo, 11 de julho de 2010

"O mundo é o bosquejo de algum deus infantil"

Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida
mas a poesia (inexplicável) da vida.
(Carlos Drumond de Andrade, Lembrete)

Acostumamos a apreender o mundo e suas relações pelo que trazemos da vida. Pensamos e tentamos dar sentido as coisas, julgamos segundo nossos valores como melhor ou pior, da forma mais conveniente para nós. Porém, ocasionalmente acontecem coisas com as quais somos incapazes de lidar, inapreensíveis pela carga acumulada que o tempo nos proporcionou.

- O que você quer, afinal?

- Não sei!

Os degraus eram enegrecidos de sujeira e coloridos pelo branco das guimbas pisadas. Os corredores escuros e barulhentos. Vozes grosseiras faziam eco, e inúmeros homens percorriam os andares como matilhas atrás de carne. As portas vermelhas anunciavam o prazer, mas cada uma guardava surpresas desagradáveis ou deslumbrantes. O corajoso tocava a campainha. Uma mulher abria, mormente desnuda, e os predadores espreitavam o que havia dentro dos apartamentos. Gordas, velhas, negras, menores, havia sempre para todos os gostos, mas a caça envolvia muitos caçadores, o que tornava a busca pela saciedade quase uma disputa, embora solidária. À cada saída, uma indagação, “e aí, está bom?”, ao que se esperava sinceridade, coisa difícil quando se envolve tesão.

Nunca imaginei o que encontraria naquele prédio comercial, de aparência austera e nome de santo. Cervejas eram anunciadas em cartazes de papelão, com grafia errada. Uma grade aberta servia de porta a um desses apartamentos, onde se via um homem muito gordo, velho, peludo e seminu, assistindo TV estirado num sofá velho, do qual levantava para vender suas bebidas. E havia lugar para gente normal, que anunciava em suas portas “Por favor, não toque. Residência familiar.” Como aquele tipo de gente morava ali?

Percorremos quatro andares do prédio. Quanto mais se subia, menos portas vermelhas, menos homens à procura. Razão simples, mulheres mais velhas, acabadas, a lógica da vida inversa a ascensão física vertical dos edifícios. A timidez de início transformou-se na mais estranha volúpia curiosa de saber o que havia dentro dos apartamentos. Se antes me sentia ameaçado, a observação, a adrenalina do desconhecido e a prática entusiasmaram meus dedos. “Oi amor, venha, vamos entrar”. O tempo para decisão era curto, não havia muito o que ponderar. Não sabia o que queria a princípio, e recusava com aquela costumaz maneira sem jeito, educada demais para aquele mundo. “Não, muito obrigado”, totalmente envergonhado.

Meu amigo e eu penetramos duas ou três dessas portas, que ocultavam pequenos cubículos. Geralmente havia três cômodos. Uma sala, onde se faziam as apresentações e vendia-se bebidas. Ora uma junkebox tocava música brega ou funk erótico, ora algumas TVs exibiam filmes pornográficos. Um banheiro sujo, mas com pias e chuveiros para putas e clientes se limparem e fazerem suas necessidades. Um anexo, que se escondia atrás de uma cortina picada, se subdividindo em buracos escuros onde se consumia.

Era no primeiro cômodo em que se ficava mais tempo. Tudo era apertado, e apesar das poltronas existentes, não havia espaço para mais de dez minutos. Um aviso servia para tornar a rotatividade bem intensa. “Tempo máximo de permanência sem consumo: 2 minutos.” Difícil a 5 mangos por cerveja. Se antes titubeava sobre o que queria e viera fazer ali, tudo se tornou muito simples: Foder.

O 118 era nosso destino. Havíamos entrado ali no tempo da inocência (a minha, é claro). Uma pequena morena com aparência de menor, pequenos seios pelados e uma bundinha proporcional maravilhosamente linda. Uma loira. Uma morena corpulenta, que ocupava a função do barman enquanto este saia para renovar o estoque. Uma outra, nordestina, com o cabelo dividido em tranças que lhe dava um ar juvenil e sapeca. Não parava de rebolar, olhando-se ao espelho. À súbita atração, acordei rapidamente, meia hora mais duas camisinhas. Deixei uma grana para meu amigo.Fomos ao buraco.

Sem muito papo. A princípio só a calça. A pedido, tudo. Joguei mochila e roupa para o fundo do colchão – o único espaço disponível – e deitei. Ela veio como louca, me chupando e beijando. Eu suspirava com seu ardor. Logo fiquei duro, e ela foi descendo com a boca, até colocar-me o preservativo. Chupou um tempo que parecia saber precisamente, e sentou virada para mim. Sorvia o bico dos seus peitos enquanto ela subia e descia. Algum tempo,  vira de costas e continua o mesmo movimento, mais frenético. O escuro estilizava a sombra do movimento do meu pau entrando em sua buceta. Indagando-me a minha vontade, coloquei-a de quatro. Soquei forte e rápido, puxando levemente suas tranças para trás. Ela gemia e o que importa é que era convincente. Deitei-a de costas e continuei metendo. Com seus macetes de mulher da vida, foi fechando as pernas e apertando, tornando a penetração mais gostosa. Gozei por medo do tempo – sempre ele.

Deve ter sido uns quinze minutos, e ela fez a pergunta engraçada “Vamos de novo.” Sorri e nos pomos a conversar um pouco. Era da Bahia, e havia acabado de completar 18. Chegara a poucas semanas. Era linda, e lhe disse, perguntando sem menosprezar, se não arranjaria um outro lugar melhor na cidade. Respondeu de que fora enganada por uma falsa promessa, e já que estava ali, pouco importava. “Perdão, qual seu nome, seu péssimo com isso.” “Katrina, é só lembrar do furacão.”

Saciado, sem pressa e tranquilo, sentei defronte a junkebox, pedi uma cerveja e pus-me a observar, já que João acabava de entrar com a loira. Tocava um pagode brega, interrompido pela campainha que soava a cada minuto. Entrava todo tipo de homens, que saiam ou se resolviam quase instantaneamente. Um homem negro de boné e um senhor nordestino fugiam ao movimento intenso. O primeiro resolveu-se com minha baiana, mas não me importei muito. O segundo ficou junto ao bar. Lembrava-me dele na entrada. Era baixo, idoso, e exibia manchas horríveis na cabeça. Parecia parte daquela bizarra decoração de bolas em verde e amarelo, como necessário aquele mundo. Pouco conversava, parecia não existir, não estar ali. O que era aquele homem? O que era aquele lugar, aquela música, aquelas mulheres, aqueles bandos? Tudo era incompreensível, não fazia parte de nada, era absurdo e por isso dotado de qualidades que não conseguiria descrever. Só sabia de uma coisa: estava como que imerso num fascínio calmo e triste, um prazer prolongado, de infinitude. Como se a “paz de Deus” (e como me sinto estranho dizendo isso, mesmo sem saber o que quero dizer) estivesse em mim.

Após a volta de Joca, comprei mais uma cerveja, e dividimos sentados. Saímos em alguns minutos, pois havia muita coisa a se fazer no mundo real. Deixamos o prédio, com nossa cerveja. Dei-lhe um beijo e um abraço, agradecido por aquilo. Um maravilhoso mundo, afinal, que possivelmente nunca se repetirá, e por isso basta para ser eterno.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Não há título

As coisas sempre estiveram lá, e isso bastava. Os dias passavam como que naturalmente, era simples pois vivia sem perceber. Não indagava sobre meus atos e sentimentos, agia porque era assim, sentia porque era assim.

Foi quando, num momento difícil de precisar, sobreveio uma estranha sensação de que viver era mais do que "deixar que as coisas fossem assim". Foi quando tudo ficou complicado. Tomava consciência de mim a medida que descobria. Abria-se o horizonte, e diante do novo, me perdia. Pela primeira vez na vida (como todas as verdadeiras primeiras vezes), senti o desespero e o delírio, amalgamados numa existência desprovida de qualquer sentido.

Preciso de mais palavras para continuar essa estória.

domingo, 6 de junho de 2010

palavras ignorantes sobre o amor e a vida

O que falar sobre o amor? Ainda, o que dizer algo a mais além do tanto que já foi dito? Sempre há a dizer algo a mais sobre um sentimento, a medida que cada experiência e cada forma de sentir é singular. Censuram-me por dizer demais que amo as pessoas. Assim como uma palavra possui inúmeros significados, cada enunciação traduz uma relação específica. Eis o que existe de mais irredutível na minha acepção de amor: a palavra sempre incide sobre uma relação ou um desejo por se relacionar. Daí, se expande numa infinitude de ramificações, que constitui isso a que chamamos vida.

Não digo relação como quem diz somente “entrar em contato com”, embora este seja um dos seus principais fundamentos. Quando digo amor a algo ou alguém, digo, antes de tudo, profundidade. Neste objeto encontro não um subserviente à ação, mas uma contigüidade de mim. Constrói-me, assim vivo. É nas tensões mais sofridas, naqueles estranhamentos intensos em que me perco sem qualquer referente disponível, é onde encontro o amor. É no outro que existo, onde adquiro sentido, assisto pelo ângulo impossibilitado pelo ego.

Pode ser que tais reflexões encontrem-se numa espécie de idealização sobre o ser humano. “Homens e mulheres se matam pelo mínimo”, eis o que diz a opinião daqueles que todo dia assistem a crimes absurdos. Nada é pequeno ante os desenvolvimentos possíveis do ato de pensar. Nossos pensamentos são um angustiante campo de possibilidades, em que se desenham narrativas fantásticas e absurdas pautadas em preconceitos inconscientes. Nesses desvarios, acabamos por nos afastar das maravilhas oferecidas pela vida, que somente cobra o preço do risco. Enquanto recompensa, sentimentos desconhecidos, prazeres irresistíveis, paixões intensas e amores (que não precisam de adjetivos).

Ainda há quem fique pensando, quem pondera sobre fatos cujas representações guiam uma leitura do mundo através de categorias essencialistas, a imagem antecedendo à coisa. Essa raiz infeliz acaba por nos aprisionar numa experiência limitadora, eternizando um momento. Reproduzem ou criam regras onde só deveria existir o entregar-se. Foi pelo particular que chegamos a História, é pela fortuna da experiência única que devemos viver.

Não há método.

domingo, 30 de maio de 2010

Outro dia um amigo me disse: -Marcelo, pára com isso de ser meu amigo, você é o Marcelo.

Descobri ontem que esse Marcelo não é facilmente reconhecível. Onde estão suas estórias, aventuras e desventuras? Quais são as suas paixões, seus sonhos, e principalmente as suas vontades?

Acordei sem esse horizonte, do sujeito que se auto-reconhece, e nos primeiros momentos é difícil viver assim.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Uma grande mulher

Ela tinha uma inocência poética nas palavras
Certa vez, ao assistir um céu noturno cheio de estrelas, disse que parecia poder pegá-las com as mãos
[Foi o instante em que me apaixonei]

Tratava com a mesma delicadeza e generosidade o doutor e o mendigo
Fazia do trabalho um complemento necessário de sua vida, não estabelecendo distinções ou subtraindo-lhe as pessoas que amava
Esperava sempre o melhor do outro, mesmo que este lhe mostrasse a face mais cruel

Nunca conheci mulher igual, e olha que tinha aquele sotaque detestável, embora em sua boca parecesse o canto dos anjos
Sempre penso nela, e ao fazer isso, animo-me a enfrentar as asperezas do dia
Me faz querer ser um grande homem e lutar para melhorar o mundo pelo simples fato deste incluí-la
[a propósito, saber que ela existe me faz ver beleza em tudo]

Eu a conheci há um tempo, não saberia precisar, porque essa memória intensamente viva me causa a impressão de que acabei de encontrá-la.

Infelizmente, intangível, devota seu amor a outro

Devo a isso a eternidade do sentimento

P.S.:Amando sempre como um garoto de 12 anos, e feliz.

domingo, 2 de maio de 2010

Decadence (parte 1)

Esta é uma estória em duas, mais compreensível seria se fossem duas em uma, mas será o homem um apenas, ou será que numa vida cabe mais que um? Esta poderia ser dita como a estória de realidade e sonho, mas o texto é um, o que elimina qualquer distinção, sendo os dois estória, tão real o sonho quanto tão sonhada a vida, é tudo palavra, é tudo imaginação.

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A atmosfera do minúsculo apartamento era literalmente tóxica. Ao visitante desavisado, aquele ambiente fazia arder aos olhos e faltar o ar. As duas únicas janelas davam uma para o muro do prédio vizinho, a outra para a asquerosa área de serviço do andar. Ambas trancadas.

Eram três da madrugada no relógio de parede da pequena cozinha. Sobre a pia, copos e mais copos sujos se acumulavam. Em um canto qualquer, a cafeteira permanentemente ligada aquecia um resto de bebida. Não havia geladeira, muito menos fogão.

Uma pequena mureta separava a cozinha do quarto-sala-escritório-casa de João. Estava sentado em frente a uma mesa, e um abajur de madeira pequeno – a única luz acesa - iluminava sua atividade e uma densa mistura de fumaça e poeira. Mais a direita, um pacote de Hollywood vermelho aberto, dois maços vazios amassados, outro pela metade com um isqueiro por cima, um cinzeiro quase transbordando de cinzas e guimbas, com um aceso a queimar. Ao lado esquerdo, contava-se um copo quase vazio de café, que deixava mais uma marca dentre tantas sobre o verniz. Debaixo de seus olhos, um caderno espiral aberto, com o cilindro de arame lotado de vestígios das folhas arrancadas que se espalhavam pelo chão, amassadas.

Uma bic com a carga no final passeava habilmente por entre os dedos de João. A cadeira inclinava-se para trás, projetando seu olhar para o teto. Estava com um gasto casaco jeans, calças de moleton velhas e meias desfiadas. Os cabelos desgrenhados denunciavam o desleixo, os dentes amarelados os vícios, o rosto pálido os dias trancados, as olheiras a insônia.

Havia um estranho silêncio, incomum pela proximidade a rua movimentada. O barulho de sua respiração era alto, e o único que se podia ouvir. Ensimesmado, parecia instigado pelo ritmo de seu peito, sobre o qual a outra mão pousava. O caminho inevitável de uma vida desregrada. Asma, enfisema pulmonar, Câncer de pulmão. O que será que pensava João? Quiçá pudesse ouvir seus pensamentos, mas era impossível. Afinal, quem ouviria? Será que o som do pensamento teria o tom de nossa voz?

Três toques fortes e secos na porta ressoaram pelo apartamento e João despertou de si, quase caindo da cadeira. O susto do barulho acelerou-lhe o coração. Recobrado, levantou-se afastando a mesa, o que fez subir uma grande nuvem de poeira. Pegou o cigarro do cinzeiro e após uma última tragada, o apagou ao levantar. Tossiu carregadamente duas vezes enquanto encaminhava-se a noroeste. Seus passos espalharam as bolas de papel pelo chão.

Olhou pelo olho mágico. Uma mulher de pele branca e cabelos negros encontrava-se do outro lado.

“O que você quer?”

“Foder” - respondeu uma voz desregulada.

“Vá embora, Jane, são três e meia da manhã”

“Abre essa porra logo!”

João abriu, girando a Papaiz e a chave. Cambaleante, Jane entrou no apartamento. Era uma mulher muito atraente, com um vestido verde daquele tecido que dá para sentir a pele. Ela olhou ao seu redor com uma expressão de asco, que se estendia a João.

“Que merda é essa! Isso aqui parece uma casa fantasma. Olha pra você, que lixo! Não quero mais foder.”

“Ótimo, vá embora.” – João abriu novamente a porta.

“Por quê tá falando assim? Não quer foder?”

“Você já disse que não quer, e eu menos ainda. Cai fora.”

“Você e essa merda de livro. Acho que você é viado, João.”

“Pode ser. Caí fora agora!”

Como se fosse de propósito, mas sob os efeitos da bebida, Jane caiu feito pedra no sofá de João, levantando outra nuvem de poeira intensa. João fechou a porta e aproximou-se de Jane. Que corpo era aquele?! Sentia desejo, após tantos dias de clausura. Inclinando o tronco para fora do sofá, Jane começou a vomitar no assoalho de taco. Era o fim do desejo. Deixou o vomito e a mulher onde estavam e voltou à cadeira. Olhando para o teto, acendeu um cigarro, e após uma boa tragada, escreveu uma palavra – decadência.
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O volume da TV na sala aumentou de repente. O teto era branco, e para ele XXXX olhava sem ver. Via seu sonho. Levantou e caminhou à cozinha. Pedofilia novamente. Seus pais não perdiam um dia sequer.

Colocou o café no copo e sentou-se na mesa da cozinha. As vozes que chegavam da sala comentavam a mesma coisa de todos os dias. “Como é que pode um pai fazer isso com a filha?” “Que monstruosidade.” “Esse homem não tem Deus no coração” “Muda de canal, esse cara é doente”. Todo dia, pelo menos por meia hora, assistia-se ao noticiário sensacionalista que defendia a pena de morte e acusava de antemão a qualquer criminoso que caísse nas suas garras. A TV ficava ligada o dia todo, e afora as novelas, os únicos programas impreterivelmente assistidos eram os noticiários. Todo o dia era arrastão, assaltos, balas perdidas, pedofilia.

XXXX tinha horror a tudo aquilo exatamente pela consciência que tinha de como aqueles programas afetavam a sua vida. Realimentavam o medo da rua com que fora criado desde criança. Crescera em condomínios, sem poder por o pé na rua. “Cuidado, é perigoso” fora a expressão mais ouvida durante toda a sua vida. E tudo era perigoso, sair à noite, conhecer pessoas novas, ir para lugares desconhecidos, tomar decisões. XXXX passara boa parte da vida ansiando pelo inseguro. Vinte anos não vividos.
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Quando se diz que algo está decadente, é normal pensarmos que houve um momento melhor, de sucesso, de desempenho elevado, de maior vitalidade. Não era bem essa acepção que fazia a cabeça de XXXX. Em sua cabeça, este termo tinha a forma de um estilo de vida misógino, egocêntrico, sujo e autodestrutivo. Era antes forma, imagem, do que qualquer outra coisa. A decadência era a sua fantasia de vida ideal, aquela que não tinha coragem de viver, mas que achava extremamente atraente.

Passava algumas horas por dia à frente do computador. Abria um documento de word e ficava alguns momento olhando para a tela com a página em branco. O barulho impertinente que a casa produzia logo o convencia de que era impossível concentração e paciência para escrever seus pensamentos sujos. Na miríade de prazeres oferecida pela internet, pegava-se nos vídeos pornôs, nas fotos de mulheres nuas. Masturbava-se, e o gozo lhe trazia o peso da culpa, de ter sido vencido pela compulsão de seus instintos. Com as mãos limpas, voltava ao PC, onde abria seu software de conversação. Lá construía sua personalidade. Identificava-se como John Milton, escritor inglês do século XVII, mas cuja existência só soube a partir do filme Advogado do Diabo, no qual Al Pacino encarnava o diabo sob a forma humana de um advogado, homônimo ao autor de Paradise Lost. Abaixo, uma citação extraída de um frustrado poeta brasileiro, da geração ultra-romântica: “Tudo é podre no mundo. Que me importa que ele amanhã se esboroe e que desabe, se a natureza para mim está morta”. No espaço reservado para a imagem, uma pintura de 1847, chamada Romans in the Decadence of the Empire, de um francês chamado Thomas Coulture, escolhida por ter sido a única imagem razoavelmente decente que encontrou com a palavra decadence no site de busca.



Com o personagem construído, passava horas e horas conversando nos chats, buscando conversar sobre sua visão de mundo. Como tinha um blog em que despejava sua visão “pessimista” e esbanjava sua erudição de orelha de livro, conseguia atrair algumas mulheres impressionadas com suas referências, e as colecionava na sua lista. Mas nunca saia dali, no máximo para as aulas da faculdade, onde tentava se formar em Literatura. Ampliava a cada dia mais esse mal estar consigo mesmo. Fazia questão de dizer-se odiando, por mais que precisasse sempre conversar. Odiar era um verbo fácil de usar quando se recusava o mundo em nome de uma ficção imaginada. Afinal, era o que praticava todo o tempo.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Dogville e o Leviatã

[Após ser violentada, explorada e acorrentada em Dogville, Grace é libertada pelos capangas de seu pai. Estes a escoltam, até  entrar no luxuoso carro do pai mafioso]

(GRACE) Vai justificar suas ações antes de atirar em nós? Essa é nova. Isso poderia ser visto como uma fraqueza, estou decepcionada.

(Pai) Não vou atirar em ninguém.

(GRACE) Já atirou em mim antes.

(Pai) Sim, é verdade, e me arrependo disso. Você fugiu. Mas lhe deu tempo de pensar em algumas coisas, mas é claro que você é teimosa demais.

(GRACE)Se não vai me matar, então porque veio?

(Pai) Naquela nossa conversa, você disse por que não gostava de mim e depois fugiu. Eu quero dizer o que
desaprovo em você. Acho que assim será uma conversa civilizada.

(GRACE) Foi para isso que veio? E chama a mim de teimosa? Não veio aqui me forçar a voltar e a ser como você?

(Pai) Se eu achasse que pudesse forçá-la a voltar, mas isso nunca acontecerá. Você é mais do que bem-vinda. Pode voltar para casa e voltar a ser a minha filha a qualquer hora. Estou até disposto a compartilhar o meu poder com você, se voltar. Mas você não quer saber.

(GRACE)O que é, então? O que é que você desaprova em mim?

(Pai) Foi uma palavra que você usou que me provocou. Você me chamou de arrogante.

(GRACE) Eu tenho o direito de chamá-lo de arrogante, pai.

(Pai) É exatamente isso que eu não gosto em você. Você é que é arrogante!

(GRACE) Veio até aqui dizer isso? Não sou eu quem está julgando, é você.

(Pai) Você não julga ninguém, pois tem pena deles. Uma infância sofrida e um homicídio. Um homicídio é necessário, certo?  Você só culpa as circunstâncias. Estupradores e assassinos podem ser vitímas pra você, mas para mim são cachorros! Se estão comendo o próprio vômito, precisam de uma coleira.

(GRACE) Os cães obedecem à sua própria natureza. Por que não merecem perdão?

(Pai) Podemos ensinar muitas coisas úteis para os cães, mas não se lhes perdoarmos sempre que obedecem à sua natureza.

(GRACE) Então, sou arrogante. Sou arrogante porque perdôo as pessoas.

(Pai) Não vê o quanto condescendente você parece ao dizer isso? Você tem esta idéia de que ninguém pode chegar, de maneira alguma, a ter os mesmos padrões éticos que você. Eu não posso pensar em nada
mais arrogante do que isso. Você, minha filha, minha querida filha, perdoa as pessoas com desculpas que nunca permitiria dar a si mesma.

(GRACE)Por que não devo ser misericordiosa? Por que?

(Pai) Você deve ser misericordiosa na hora de ser misericordiosa. Mas deve manter os seus padrões, você deve isso a eles. O castigo que você merece pelas suas transgressões, eles também merecem.

(GRACE) Eles são seres humanos.

(Pai) Todo ser humano precisa responder pelos seus atos? Claro que sim! Mas  você nem dá a eles essa chance. E isso é extremamente arrogante. Eu amo você,  eu amo você demais, mas você é a pessoa mais arrogante que eu já conheci na vida. E chama a mim de arrogante! Eu não tenho mais nada a dizer.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Desde o fim de sábado, ando com uma siquizira que ronda entre a dengue e a gastroenterite. Como se as coisas já não andassem lá as mil maravilhas, agora vivo nesse vai e vem, entre a UPA e a privada.

Perdendo as aulas da pós-graduação, talvez mais do que isso, um tempo precioso. É preciso calma, paciência (afinal, foi a falta dela que até aqui me trouxe). Um momento aberto no tempo, o que acontece a cada segundo, enquanto minha barriga faz barulhos estranhos.

Estou suando, e este é um bom sinal.

terça-feira, 16 de março de 2010

O amor segundo Adriano

Os cínicos e os moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a, contudo, menos indispensável do que aqueles, visto que eles podem perfeitamente prescindir dela. Do moralista tudo se espera, mas espanto-me que o cínico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros receiem seus próprios demônios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem, esforçando-se por aviltar o prazer a fim de lhe tirar o poder quase terrível sob o qual sucumbem, e diminuir o estranho mistério no qual se sentem perdidos. Acreditaria nessa associação do amor às alegrias puramente físicas (supondo-se que tais alegrias existam) no dia em que visse um gastrônomo soluçar de prazer diante do seu prato favorito, tal como o amante sobre um ombro amado. De todos os jogos, o do amor é o único capaz de transtornar a alma e, ao mesmo tempo, o único no qual o jogador abandona-se necessariamente ao delírio do corpo. Não é indispensável que aquele que bebe abdique da razão, mas o amante que conserva a sua não obedece inteiramente ao deus do amor. Tanto a abstinência quanto o excesso não engajam senão o homem só. Salvo no caso de Diógenes, cujas limitações de caráter de racional pessimista definem-se por si mesmos, toda experiência sensual nos coloca em face do Outro, acarretando-nos as exigências e as servidões da escolha. Não conheço, fora do amor, outra situação em que o homem deve decidir-se por motivos mais simples e mais inelutáveis. No amor, o objeto escolhido deve valer exatamente seu peso bruto em prazer, e é ainda no amor que o amante da verdade tem maiores probabilidades de julgar a nudez da criatura. A partir do desnudamento total, comparável ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e a da prece, maravilho-me ao ver renovar-se, cada vez, a complexidade das recusas, das responsabilidades, das promessas, das pobres confissões, das frágeis mentiras, dos compromissos apaixonados entre nosso prazer e o prazer do Outro, tantos laços impossíveis de romper e tão depressa rompidos! Este jogo cheio de mistérios, que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa, pareceu-me belo o bastante para consagrar-lhe uma parte de minha vida. As palavras enganam, especialmente as do prazer, que comportam as mais contraditórias realidades, desde as noções de aconchego, doçura e intimidade dos corpos, até as da violência, da agonia e do grito. A pequena frase obscena de Posidônio sobre o atrito de duas parcelas de carne, que te vi copiar nos teus cadernos escolares com aplicação de menino ajuizado, é incapaz de definir o fenômeno do amor, assim como a corda que o dedo faz vibrar não pode explicar o milagre dos sons. Essa frase insulta menos a volúpia do que à própria carne, esse instrumento de músculos, sangue e epiderme, essa nuvem vermelha de que a alma é o relâmpago.

Confesso que a razão permanece confusa em presença do prodígio do amor, da estranha obsessão que faz com que essa mesma carne, que tão pouco nos preocupa quando compõe nosso corpo, limitando-nos somente a lavá-la, nutri-la e, se possível, impedi-la de sofrer, possa inspirar-nos uma tal paixão de carícias simplesmente porque é animada por uma personalidade diferente da nossa e porque representa certos traços de beleza sobre os quais, aliás, os melhores juízes não estariam de acordo. Aqui, como nas revelações dos Mistérios, tudo se passa além do alcance da lógica humana. A tradição popular não se enganou ao ver no amor uma forma de iniciação e um dos pontos onde o secreto e o sagrado se tocam. A experiência sensual equipara-se ainda aos Mistérios quando a primeira aproximação provoca nos não iniciados o efeito de um rito mais ou menos assustador, escandalosamente desligado de todas as funções até então familiares, como comer, beber e dormir, parecendo antes motivo de gracejo, vergonha, ou terror. Da mesma maneira que arrasta-nos para um universo diferente, onde, em situação normal, nos é vedada a entrada e onde cessamos de nos orientar, uma vez apagado o ardor e extinto o prazer. Cravado no corpo amado como um crucificado à sua cruz, penetrei em certos segredos da vida que começam a desvanecer-se da minha lembrança por efeito da mesma lei que faz com que o convalescente, depois de curado, cesse de encontrar-se nas misteriosas verdades do seu mal, e que o prisioneiro posto em liberdade esqueça a tortura, e o triunfador a embriaguez da glória.

Por vezes sonhei de elaborar um sistema de conhecimento humano baseado no erotismo. Uma teoria do contacto na qual o mistério e a dignidade de outrem consistiriam precisamente em oferecer ao Eu esse ponto de ligação com um mundo desconhecido. A volúpia seria, nessa filosofia, a forma mais completa e mais especializada de aproximação com o Outro, uma técnica a mais colocada a serviço do conhecimento de uma individualidade estranha à nossa. Nos encontros, mesmo os menos sensuais, é ainda no contacto que a emoção nasce ou morre, tal como acontece com a mão um tanto repugnante da velha que me apresenta uma petição, a fronte úmida do meu pai em agonia, ou a chaga lavada de um ferido. As próprias relações mais intelectualizadas, ou as mais neutras, ocorrem através desse sistema de sinais materiais: o olhar subitamente iluminado do tribuno a quem explico determinada manobra numa manhã de batalha; a saudação impessoal do subalterno que nossa passagem imobiliza em atitude de obediência; o olhar amistoso do escravo a quem agradeço por trazer-me uma bandeja; ou a expressão apreciadora de um velho amigo ante o camafeu grego com que acabamos de presenteá-lo. Com a maior parte das pessoas, os mais ligeiros ou mais superficiais desses contactos bastam a nosso desejo, ou até o excedem. Que esses mesmos contactos insistam e se multipliquem em torno de uma criatura única até bloqueá-la toda inteira; que cada detalhe de um corpo apresente para nós tantas significações perturbadoras como os traços de um rosto; que um único ser, em vez de inspirar-nos quando muita irritação, prazer ou aborrecimento, nos obsidie como uma melodia ou nos atormente como um problema; que esse ser passe da periferia do nosso universo ao seu centro, que se torne mais indispensável do que nós próprios, e estará realizado o admirável prodígio: assistiremos então à invasão da carne pelo espírito, e não mais um passatempo do corpo.

(Marguerite YOURCENAR, Memórias de Adriano, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. pp.20-1 (6ª edição).)

sábado, 13 de março de 2010

Deus do céu, como "Only by the night", do Kings of Leon, é sensacional! O melhor cd de rock que ouvi desde "Ten", do Pearl Jam.

Não faço a miníma idéia do que fazer hoje. Segunda começa o Mestrado. A que passou foi foda, no pior sentido possível do termo.

Tenho que rever "Dogville",  reorganizar as minhas coisas, meus livros, textos. As coisas andam bem confusas e  tensas.

ENFIM!

domingo, 7 de março de 2010

Outro dia (...)

Outro dia, tive um prazer que nunca havia experimentado. Chegara cedo à comemoração do aniversário de uma amiga, na Lapa, então acabei procurando um bar para tomar uma cerveja, enquanto ninguém chegava. Acabei me alocando na esquina da Lavradio com a Riachuelo, num estabelecimento que já sou freqüentador, mas no qual nunca havia estado sozinho. Sentei e pedi uma Brahma. Ante a ausência da predileta, optei pela Antártica. Quatro e cinqüenta era caro para uma cerveja, mas estava razoável para os padrões da Lapa.

Em tempos de choque de ordem, achar um bar onde possa beber e fumar é quase um privilégio. Oliveira (todo garçom pode ser carinhosamente assim chamado, uma convenção entre meus amigos) trouxe a garrafa, poupei-lhe o esforço e enchi meu copo. Tinha estudado boa parte da tarde no Real Gabinete Português de Leitura e posteriormente no CCBB, procurando bibliografia para uma pesquisa em que estou trabalhando quase de graça (ossos da amizade!). Na noite anterior, dormira pouco, fichando textos importantes e envolto em pensamentos pervertidos. Enfim, estava cansado, e o lugar que haveria de ir em seguida, onde se daria a comemoração para a qual lá estava, não era de meu gosto, cerveja cara, gente empolada, música ruim e sem espaço externo para fumar. Comparecer era uma obrigação de amigo, a qual minha consciência ainda não consegue suportar o peso de não cumprir.

O primeiro gole na Antártica foi maravilhoso, como todos os primeiros goles após um dia fatigante de trabalho. É de um alívio, digamos, ao nível da subsistência, imagino que comparável daqueles que tomam vodca ou uísque para suportar o frio do inverno russo ou escandinavo. Estava com a bolsa pesada de livros que havia comprado horas antes num sebo, e a aloquei no meu colo. Após duas goladas generosas, acendi meu cigarro, e me pus a observar o movimento. Sete da noite ainda era cedo para o “fervo”. Como sempre, muitos mendigos passavam, meninos de rua, alguns engraxates, vendedores de amendoim, até trabalhadores, engravatados, estudantes saindo da faculdade. Aquele era um lugar que as pessoas costumam chamar de “democrático”, pois fica estrategicamente localizada entre o Centro – comercial, empresarial, cultural – e alguns bairros residenciais, como Santa Tereza, Bairro de Fátima, Praça da Cruz Vermelha. Porém não há nada de democrático, pelo menos a noite, dado os preços exorbitantes aplicados na região. Andava realmente desgostando do núcleo da “legítima” carioquice. Maldita revitalização!

Como minha paciência de voyeur não é muito grande, logo me enfastiei, e pus-me a manusear os livros que havia comprado. Abri a primeira página de “O Clube do Filme” e comecei a lê-lo. Este livro trata da tentativa de um pai canadense, crítico de cinema, de proporcionar alguma educação ao filho de 16 anos, dando-lhe a oportunidade de deixar de freqüentar a escola, na qual ia de mal a pior, por uma atividade diária de assistir três filmes, a escolha do pai. No dia posterior, descobriria que o David Gilmour, autor do livro, não é o do Pink Floyd, como um amigo meu havia dito. A leitura cativava-me a cada linha, e não parei de ler. Bebia, fumava e lia. Tudo ao meu redor desapareceu e senti uma sensação subitamente agradável. Nada tirava a minha atenção, a não ser quando a garrafa terminava. Ficar só sempre foi um problema para mim, e estava feliz de não ser naquele momento. Aos poucos, senti a onda da cerveja subir-me a cabeça, já na terceira garrafa. Embora a leitura continuasse agradável, fechei o livro e pedi a conta. O resto da noite não interessa, pois não foi agradável. O que me leva a acreditar que, momentaneamente, a solidão tem me feito feliz. Estou meio cansado do “fervo”, de ouvir, de trocar alguma coisa. Melhor, não estou tendo necessidade disso, de algo que sempre me foi uma constante. Ando encontrando os outros, na maioria das vezes, mais como dívida de amizade do que por prazer.

Falta-me ainda uma coisa. Quer dizer, falta-me muita coisa. Plenitude, só morrendo. Refiro-me aquilo que me falta com mais urgência.  Liberdade para amar, ou amar com liberdade. De certa forma, ainda me parecem palavras paradoxais. Talvez o primeiro passo tenha sido dado para desconstruir essa impressão. Amanhã tenho analista.

Vou falar de mulheres.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Aprendendo a deixar as coisas mal resolvidas e a levar a vida, imperfeitamente.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Faz mais de dois anos desde que ela me largou.


O dia está chuvoso e quente. Não consigo largar o cigarro. Eu ainda penso nela.

Não queria sentir saudades, mas eu sinto, e isso me incomoda muito. Tenho que preparar uma aula sobre Império Ultramarino Português. Nossa melhor trepada foi nesse sofá, quase a fiz gozar. Ela era uma idiota, e eu nunca fiz uma mulher gozar. Será falta de vocação? Céus, que calor! Nem essa maldita chuva para refrescar o dia!

Minha vida não tem título.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Escrevendo de madrugada para o sono vir

Sabe, gostaria de aprender a andar sujo. De saber carregar a dor, o incômodo, e fazer outras coisas, enquanto aquelas  não passam. Acho que me falta uma certa paciência, persistência. Tenho medo de me testar, de correr riscos. Dormir às cinco para acordar às seis. Viver a vida desrespeitando as normas do bem viver. Estudar de ressaca, dormir sem tomar banho.

Ainda sou muito fresco, não, medroso. Já fui mais em algumas coisas, creio que estou me transformando. Preservo meus prazeres mesquinhos. O pior é perceber um poder absurdo dentro de mim, que este instinto conservativo parece me impedir de liberar.

Um pouco mais de sujeira, de desprendimento, de resistência. Só isso que falta. Sei que não vou mudar do dia para noite. Passei da fase de acreditar em revoluções abruptas. Quero deixar de ter medo. Só eu sei do que estou falando.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Olhos de realidade

Era umas nove e pouco da noite e vinha de Botafogo no metrô, sentado e pensando no filme que havia acabado de assistir. De repente, passeando os olhos pelo interior do vagão, deparei-me com outros que me encaravam. Estava entre a terceira e quarta fileira de cadeiras na minha diagonal, num pequeno espaço deixado pelas pessoas sentadas a sua frente.  Via sua imensa cabeça, quadrada de nordestino, uma blusa aberta nos primeiros botões, talvez fosse gordo. Desviei o olhar, pensando ser uma mera coincidência, mas toda vez que passava meu olhar naquela direção, encontrava aqueles olhos, cheios de raiva, ameaçadores. Engoli seco, um gelo me subiu pela espinha, e busquei evitar aqueles olhos.

Concentrei-me num casal aparentemente gay que adentrou o vagão na estação do Flamengo, mas  não saia da minha cabeça toda uma cena, do homem vindo na minha direção a me fazer algum mal de que nunca saberia. Os garotos perceberam a minha atenção, e para evitar constrangimentos maiores, desfoquei deles. Para meu alívio, os olhos do homem não mais me fitavam. 

Ele levantou e desceu na Central, sem me encarar. Começo a acreditar que o que tanto temi não estava naqueles olhos.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Dias de Nada

O que eu escrevo não é a última bolacha do pacote. Expressão deliciosa: "a última bolacha do pacote". Até gosto deste fato, que permite fazer uso dessa coisa gostosa. "A última bolacha do pacote" é a "última bolacha do pacote".

Aqui no Rio faz um tempo gostoso, quase de outono. Esse tempinho meio chuvoso, esse ventinho meio frio, tudo tão mais ou menos. Para não fazer nada. Deus! Como amo! É o que estou fazendo agora. Ou você acha que escrever sobre o tempo é alguma coisa?

Também encontrei uma música para ocupar meus ouvidos. Lux Aeterna, interpretada pelo the Kronos Quartet. Não foi um encontro propriamente dito, mas um reencontro. Estava num desses dias de nada vendo a patinação artística dos Jogos de Inverno quando uma dupla canadense entrou com essa música. Me veio na hora, "Réquiem para um Sonho".  É magnífico: um sentimento de tensão que precede a morte, mesmo nunca tendo estado lá. Gravidade calma.

A última bolacha do pacote. Uns filminhos para os dias finais do Carnaval. "Gran Torino". Meus blocos. Saudades boas. Um ano excepcional pela frente. Não é hora para isso. Garganta meio irritada, um marasmo de corpo doente. Meu resfriado trouxe o frescor!

A última bolacha do pacote.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Todo Carnaval tem seu fim!

Mais um Carnaval chega ao fim. O meu, pelo menos. Ano que vem vai ser diferente. Mais longo, espero. Preparar fantasias, confetes e serpentina com bastante antecedência! Brincar, brincar, brincar... 

E para os que não gostam dos festejos de fevereiro, que acham festa de babaca, puta e viado; para aqueles que adoram julgar, que odeiam por odiar sem indagar porque se odeia, que fiquem com seus julgamentos. Eu respeito.

Pois esse é o espírito: existe um outro!

domingo, 31 de janeiro de 2010

Futuro do Pretérito

O futuro do pretérito é o tempo verbal da insatisfação do homem com a sua imperfeição
Da realidade alternativa que nunca existiu, mas que gostaríamos que tivesse existido.
Da moralidade, que impele ao homem do presente a responsabilidade do que não mais existe
Da impossibilidade de conceber que não há mais possibilidade de escolha
Que o que passou é e nunca deixará de ser inexorável

É o tempo da dor, que possivelmente não passará

É o tempo da cruz que insistimos em carregar

o tempo da civilização

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Adeus superego!

Eu estou bêbado! O suficiente para dizer coisas que não diria sóbrio, mas não tanto para deixar passar erros de português. Hoje não haverá ilustrações, contente-se com essa realidade sem graça, pois essa é a verdadeira. Minha noite foi maravilhosa. Conquistei um amigo, alguém que há muito admirava, e parece que agora ele me considera um par. Conversamos assuntos relevantes, sobre mulheres, e bebemos, a lot! Enquanto bebíamos, apareceu uma ruiva maravilhosa, e nos ofereceu uma filipeta de uma wiskeria (leia-se puteiro) que estava abrindo na rua da Quitanda. Number One. Nome misterioso. Meu encantamento "Mandrake" (leia-se: protagonista de Rubem Fonseca, se você não sabe o que é, foda-se, procura no google!) tomou-me conta, fiquei excitado e estimulei meu genial amigo a me acompanhar. Seu  pudico espírito "classe merdista" falou mais alto e foi para casa. Na onda das sete cervejas (não é preciso muito para me deixar no brilho), voltei e vivi a minha "aventura" sozinho.

Nenhuma menina se encantou por mim! O diabo da ruiva, com sua excitante tatuagem, era só uma promoter, paguei cervejas, e nem assim fui percebido. Saí pelas onze, antes da noite acabar, cambaleante. Fato: não voltarei! Fato 2: Frustrado? Claro, mas com um auto-estima do tamanho do mundo. Afinal, homens de verdade são aqueles que têm derrotas para contar.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Porque devemos pular Carnaval


Francisco de GOYA E LUCIENTES, Spanish Entertainment, 1825

Os camponeses ficavam nos cabarés dos arredores, bebendo e preparando-se para a fiesta. Haviam chegado tão recentemente das planícies e das montanhas, que precisavam habituar-se gradualmente à mudança de valores. Não podiam começar pagando os preços dos cafés, e gastavam seu dinheiro nas tavernas. O dinheiro tinha ainda seu valor bem definido em horas de trabalho e em alqueires de cereais vendidos. A seguir, durante a fiesta, não teriam mais importância os preços ou os lugares onde os pagassem. (Ernest HEMINGWAY, O Sol também se levanta, p.163, 1981)


Quem deseja colocar-se na dependência de uma ordem, de uma possessão ou de uma ciência, e se submete à lei (a do lucro ou a da segurança) que elimina, com o risco, a felicidade que ela promete. Aliena-se. Nada “obtém” da felicidade senão representações. Porquanto não parece haver felicidade senão onde o outro é a condição de ser, onde se faz a festa, onde a conservação dos bens é alterada por um dispêndio feito em nome de outrem, de um outro lugar ou do Outro, onde se interpõe a festa de uma generosidade comunicativa, de uma aventura científica, de uma fundação política, ou de uma fé. (Michel de CERTEAU, Culturas no plural, p.54, 1995.)

Muito se critica sobre certo aforismo brasileiro que afirma que o ano começa somente depois do Carnaval. Intrínseca a essa argumentação, encontram-se as opiniões acerca da falta de ânimo ao trabalho do homem tupiniquim e a sua indisposição ao esforço coletivo, à iniciativa de construção do bem comum. O grande historiador paulista Sérgio Buarque de Holanda caracterizava no tipo ideal do aventureiro um dos fatores de nosso atraso, enfatizando a ânsia individual pelo enriquecimento do colonizador português em contraposição ao esforço de construção e planejamento da colonização espanhola.

Esse tipo de reflexão tem como referência o desenvolvimento histórico de uma sociedade específica, com valores políticos e uma moral social que lhe são próprias. Sérgio Buarque, assim como o liberal francês Alexis de Tocqueville no século XIX, tomavam o exemplo inglês como o grande exemplo de sociedade política, fundada em tradições e instituições que garantiam a estabilidade social e política, e conseqüentemente o progresso tecnológico e econômico. Foi na Inglaterra, dentro desse quadro consolidado, que emergiu a sociedade capitalista, com valores que se expandiram pelo globo e deu formas ao que chamamos de mundo contemporâneo. O capitalismo, que segundo a reflexão webberiana teve o cerne do seu sistema de valores advindos do protestantismo calvinista,  fundado na austeridade e na valorização do trabalho, engendrou um outro tipo de cultura, onde o indivíduo passou a valer mais do que a comunidade, e a existência passou a ser definida a partir da condição social possibilitada pelos frutos do trabalho, traduzido em consumo.

Tanto a crítica do liberalismo político quanto a da ética capitalista do trabalho permeiam a opinião do senso comum sobre o “jeitinho brasileiro”, esse povo preguiçoso e malandro que só pensa em “se dar bem”, sempre em detrimento do próximo. Encontraria-se aí a explicação de todos os males do país, desde a desigualdade social à corrupção vigente. Desta feita-se, faz-se um julgamento sobre a evolução histórica de nosso país, rebaixando-o na hierarquia da história da civilização mundial. Logo, o Carnaval, se por um lado se destacaria como a manifestação cultural que melhor representa o povo brasileiro, por outro seria o símbolo maior de nossa inaptidão à civilização.

O preconceito e o julgamento são práticas ontologicamente humanas. Desde nosso nascimento, somos delimitados cultural e historicamente pelo mundo ao nosso redor, educados nos valores dessa sociedade que legitima comportamentos repressivos. Valorizamos tanto o trabalho porque fomos instruídos nessa moral social,  funcionando nos limites do fracasso e sucesso, onde os homens são reconhecidos por padrões de poder, riqueza e beleza que supervalorizam a capacidade do indivíduo de se engrandecer. Passamos um terço da vida nos sacrificando para atingir esses padrões, lutando contra o estigma do fracasso que a competição estrutural nos impõe, e que se existe é porque partilhamos e aceitamos essas representações. É essa sociedade, são esses valores, que denigrem o Carnaval, ou tentam transformá-lo em lucro, utilidade, produto e consumo.

O que há de verdadeiramente revolucionário no Carnaval se assemelha à narrativa de Heminghway acerca do comportamento dos camponeses nas touradas de Pamplona. Um momento onde o maior valor é a fruição, a felicidade em estar compartilhando a alegria com outros, onde o semelhante não é um adversário, e sim um partícipe. Um sentimento instintivo, que é subversivo pois reage à moral social, onde – e este é o caso específico do Carnaval – o ridículo encontra um momento de aceitação. Se as festas de Pamplona têm um caráter assumidamente religioso, o Carnaval justifica-se dentro do universo cultural católico brasileiro como uma festa laica de descarrego e luxúria que prepara os quarenta dias de privação que antecede a purgação da culpa que está no princípio do Cristianismo. Se Cristo se doara em nome de seu povo, essa doação nos foi cobrada em séculos de repressão cultural, consolidada em instituições que acabaram por desnaturalizar o próprio homem.

O Carnaval, em sua significação mais essencial, na espontaneidade da sua  festa, escorregadio aos tentáculos disciplinadores da ordem do Estado e do capital, nos põe de volta em contato com os nossos instintos mais naturais, e que só adquire seu sentido na presença do outro, com quem se compartilha um estado de catarse ocasionado pela fruição, abrindo um canal desobstruído de comunicação. Obtém assim uma felicidade que, seguindo pelas idéias de Michel de Certeau, não se restringe à dependência das representações produzidas pela ordem e seu discurso de autoridade.