quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Reflexões natalinas

Pena, caneta, máquina datilográfica, computador. O esforço físico implicado na escrita foi, com o passar dos tempos, tornando-se menor com o advento de novas tecnologias. A mudança do meio material trouxe inovações interessantes nas formas e nos estilos. Por exemplo, com o texto em tela, a estrutura pôde ser transformada com simples CtrlVs e CtrlCs, testando-se muito mais facilmente inúmeras arrumações distintas da narrativa original. Tais procedimentos demandariam bem mais trabalho àqueles que tinham ou têm em mãos somente tinta e papel.

Porém, sou pessimista nesta questão. Se antes o risco e o rascunho deixavam os rastros do pensamento do autor, a borracha, o corretor líquido e o “delete” apagaram definitivamente os simples erros ortográficos, de concordância, de memória e o que é pior, aqueles caminhos do texto que foram deixados de lado pela mente criativa, talvez tão sublimes ou originais quanto a narrativa vencedora. Num obscuro futuro, os e-books tornarão os traços censores inacessíveis, e possivelmente daqui a poucos anos, haverá uma dificuldade muito maior em estudar o percurso feito por um autor na elaboração de um texto.

Embora as transformações dos instrumentos materiais de escrita estejam destruindo uma parte essencial da criação – a dificuldade, o esforço e o aprendizado dos erros – essa é somente uma pequena parte das mudanças do ato de escrever. E aqui não trato somente de literatura, mas da principal função da língua e sobre a qual ela se constrói: a comunicação. As formas instantâneas criadas com o advento da internet tornaram a comunicação escrita numa coisa vulgar, desinteressada. Falo enquanto alguém que algum dia enviou cartas. Lembro-me (foi ainda nessa década) do esforço que era escrever uma carta (pois embora exista o meio, faz tempo que não o utilizo). Demandava concentração nas coisas a serem escritas, um cuidado no uso das palavras. A dificuldade que implicava o envio da carta diminuía enormemente o espaço para erros, mal-entendidos. Também era necessário um esforço maior de memória para dizer tudo que havia para ser dito (e sempre ficava faltando algo). Escrever cartas para alguém era não só um importar-se com o destinatário, mas também um sofrimento relacionado à leitura e a resposta daquele. Havia sentimento, drama, profundidade, vida. Com os e-mails, esse importar-se deixou de existir. Não existe mais a impressão ultrapessoal do desenho das letras, de uma mancha de café, de um pontinho de sangue ou catchup que tornava aquela mensagem um registro concreto da expressão de um momento único no tempo.

Nesse final de ano, as mensagens coletivas me importunam. Demonstrar sua afeição e seus bons agouros nesse momento tão simbólico de nossa cultura tornou-se algo impessoal, uma mensagem pronta e protocolar, sem qualquer significado. Não que algum dia tenha me importado muito com isso. Mas era diferente receber cartões de Natal. Sim, eram mensagens prontas de fim de ano, mas havia um mínimo de esforço, em imprimir sua assinatura com tinta de caneta, levar os cartões ao correio. Lembro-me que os cartões eram adereços tão importantes da árvore quanto as bolinhas e as pequenas esculturas. Hoje, a árvore está vazia de cartões de Natal, somente as empresas lembram-se de mandar felicitações via papel. Realmente algumas coisas passam a importar à medida que sentimos a sua ausência, ou talvez seja uma mera nostalgia boba.

Enfim, escrevo segundo meu estado de espírito. Escrevo a partir de uma personalidade que tem dificuldades imensas em socializar-se e que abomina formalidades. Se por um lado a tecnologia tornou possível o contato de pessoas de ambos os lados do mundo; por outro afastou as próximas. E se a dor é o pressuposto do alívio, a sensação de proximidade, muitas vezes, nos impede de sentir saudade, ou de dar valor ao encontro presente. Que absurdo não é envolver-se amorosamente por alguém que se conheceu através da internet, de um perfil? Reconheço que alguns realmente dão certo, mas o que estou falando é da integralidade de uma relação. Não se relaciona somente por palavras, mas por olhares, por expressões corporais, por um tom de voz com uma afetação diferente, que expressam expectativas, tensões, constrangimentos. Isso é único e insubstituível, mas cuja comodidade das inúmeras opções disponibilizadas pela tecnologia tornam cada vez menos valorizados, ou perceptíveis. O perfil diminui a possibilidade da frustração, assim como dos encantos mais surpreendentes.

A comodidade que a técnica e a tecnologia proporcionam tem tornado não somente o ato de escrever uma coisa vulgar, mas também a relação entre as pessoas. Não esforça-se para escrever melhor, não se reflete sobre as formas de se expressar, não se valoriza a relação com a escrita e logo com o outro. Relaciona-se com mais pessoas, mas essas relações são cada vez mais superficiais, instantâneas, vulgares. Empobrece-se a escrita, empobrece a comunicação, empobrecem-se as pessoas, empobrece-se a vida.

PS: Este texto foi escrito diretamente no Word 2007

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A História, o passado e a cultura

Na realidade, a única coisa que nos oferece a História é uma certa idéia de um certo passado, uma imagem inteligível de um fragmento do passado. Não é nunca a reconstrução ou a reprodução de um passado dado. O passado não é dado nunca. O único dado é a tradição.(...) A imagem histórica surge quando se indagam determinadas conexões, cuja natureza se determina pelo valor que se lhes atribui. (Johan Huizinga, El concepto de la historia y otros ensayos, México, Fondo de Cultura Económica, 1992, p.91.)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A criação do mundo

Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas. Luminosos uns, brumosos outros, e todos singulares. (Miguel Torga, A Criação do Mundo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, p.11.) 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Tempo

O tempo é um peso que pesa concreto
nessa necessidade de me manter vivo
ou nesse medo de viver.

Um cigarro, uma fome, a libido
Alívio que se confunde com prazer.
Precisão de fumar, de comer, de gozar
De consumir a saciedade dos minutos.
Logo, com as horas, me canso
Desse árduo trabalho de preenchê-las.

Outro dos meus vícios, talvez meu pior
são aqueles pensamentos
em que vivo a vida que gostaria,
Limitando a vida possível,
aquela dura realidade das relações,
cujas frustrações me furto,

Assumo assim minha vocação para o medíocre,
Por não conhecer, e querer, nada muito além
daquilo cujo mínimo risco e esforço me faz permitido.