domingo, 21 de dezembro de 2008

O cadáver

¨Tem um homem morto lá embaixo.¨

Vejo defuntos todo o dia na tv. Sou fã de filmes de ação, onde a morte, em suas mil modalidades, é o atrativo principal. Pela manhã, o tablóide popular trás sempre alguns falecimentos- chefes do tráfico, policiais, crianças, idosos, pessoas famosas- cuja ¨causa mortis¨ são de todas as naturezas possíveis -assassinatos encomendados, roubo seguido de morte, bala perdida, negligência médica, descaso público. Nos noticiários televisivos, tais fatos são repetidos, decerto numa exposição mais dramática, que a letra escrita da imprensa não é capaz de expor.

A notícia recebida na descida da rua gelou-me a espinha. A possibilidade de defrontar-me com um cadáver exposto nas vias públicas não é corriqueira como apontam as estatísticas da Secretaria de Segurança Pública. Moro perto do morro, mas esse é um fato para grande parte dos moradores do Rio de Janeiro. É asfalto ainda, o Estado está presente não somente pela presença de sua força policial. Escuto tiroteios com uma rotina maior do que gostaria, fruto da ação dos protetores da vida dos cidadãos pagadores de impostos, em suas incursões nas ¨comunidades¨, um conceito moderno para expressar o espaço destinado aqueles excluídos das benesses do poder público e do capital.

Fim da ladeira, dobro à esquerda. Gente amontoada um pouco adiante, cercando uma viatura policial. Passo cautelosamente, o coração um pouco acelerado, os olhos vidrados na cena, e as pernas assustadas, querendo seguir o caminho pré-estabelecido. Sou acometido pela minha natureza curiosa de espécie humana. O fim público de uma vida é evento concorrido, e a necessidade de saber sobre o fato torna-se um imperativo.

Há um corpo estirado, envolto num saco preto. Vê-se somente o tênis Adidas soçaite e a bainha da calça jeans escura. As versões da morte circulam, sem necessidade de interrogações.

¨Foi morte encomendada, o rapaz era guardador de carros aqui em frente.¨
¨Vieram perseguindo a pé desde a Saens Pena, assaltaram um banco por lá.¨
¨O bandido matou, o homem reagiu.¨

A verdade, naquele instante, não importava. A circulação de informações sobre aquela estória não valia pelo grau de reflexão embutido, mas era gerada pela mera contigência de dizer algo, de comentar o esplendoroso acontecimento. Não fiquei até chegarem os carros de reportagem. Fui ao mercado e voltei, pelo mesmo caminho, e o corpo continuava lá, com o círculo de pessoas a admirarem e comentar.

Mais tarde em casa, soube que deu no telejornal. Houve tiroteio e pânico na Hadock Lobo. Dois homens, que praticavam o assalto conhecido como ¨saidinha de banco¨, foram flagrados por dois policiais que passavam . Tentaram fugir em sua moto, mas foram perseguidos. Um deles escapou, fazendo uma manobra milagrosa, na qual passara do veículo de duas rodas para um taxi que esperava o sinal abrir. O outro, mais jovem, acabou ali, dentro do saco preto, furado pelas balas da lei.

Seu nome era Walter Reis, 16 anos.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

sábado, 6 de dezembro de 2008

O Banho

Faltara água no prédio, estavam impermeabilizando a caixa d`água. Há dez dias. O dia de trabalho na Bolsa fora estafante, como sempre, e só existia um balde dentro de casa. Meia-noite e meia, e o acesso à cisterna estava fechado.

O homem passara a semana no escritório de sua corretora, que possuía um confortável vestiário. Maldita idéia de vir para casa direto, pensou. Sentia-se sujo, e ficar sem tomar banho não era uma opção. Aquele balde teria que dar. Fazia um pouco de frio, então colocou para esquentar uma parte da água. Ajeitou sua roupa de dormir em cima da cama e pegou uma toalha limpa. Nesse meio tempo, a água fervera. Colocou o balde dentro do box e despejou a água quente por cima da fria, quebrando um pouco a temperatura. Arranjou um recipiente – uma pequena e antiga panela de alumínio – para fazer o transporte da água para o seu corpo.

Tirou a roupa e entrou no box. Ao primeiro instante - um grande e largo homem pelado com o recipiente na mão - veio uma lembrança a surpreender-lhe – um nome: o baldinho. Era como se chamava a panelinha com que tomava banho quando menino – uns oito ou nove anos – época em que morava no três-sete-meia da Hadock Lobo. Não era do tipo que guardava reminiscências bucólicas. Fora uma criança de condomínio, com chuveiro e água encanada. Porém, durante anos, até se mudarem para São Cristóvão, aquele apartamento permanecera sem chuveiro elétrico ou aquecedor. Nos dias de frio, mamãe esquentava-lhe a água e tomava banho quebrado e de baldinho – tivera muita alergia, por isso o pediatra não recomendava banhos muito quentes.

A atípica recordação divertiu-lhe, tirando o mau-humor da circunstância. De repente, o sorriso sumiu do rosto do homem gordo. Por onde começar? Um corpo imenso e pouca água. O que fazer? Após uns instantes coçando a cabeça, decidiu começar por ela mesmo, seguindo a lógica de que a água acabaria por descer pelo tronco, a molhar-lhe todo o resto. Curvou-se com o baldinho na mão esquerda, encheu-lhe de água e fez o que pensara, utilizando o outro braço para espalhar a água que descia pelo seu tronco. Repetiu o movimento umas três ou quatro vezes, deixando-o molhado o suficiente para o ensaboamento.

Abandonara o baldinho flutuando no balde e começou a passar o sabonete. Era diferente de um banho de chuveiro. Não havia aquele jato forte, que descia frenético, quente e anestesiante, a desviar-lhe o pensamento em outras direções. Só se ouvia a fricção do sabonete com os pêlos do corpo. Era interessante, parecia a primeira vez que prestava atenção no ato de ensaboar-se. Cansado demais para pensar em qualquer coisa, concentrou-se naquela descoberta. Cobria de branco os peitos caídos, a volumosa barriga, os braços flácidos e o dorso dobrado de gordura . Sentia-se tocar, expressão que só ouvira nos filmes de adulto, em boca de mulheres esculturais. Era estranho e sensual, mas calmo. Não havia ereção, mas era sexo. Fechou os olhos e pôs-se a sorrir, um sorriso gostoso, leve e descomprometido, quase a reação deslumbrada de uma criança com coisa nova e fascinante. Ficara minutos e minutos nesse (re) descobrir-se.

Um frio lhe acometera, o que rompeu a sua imersão sexual. O balde cheio um pouco aquém da metade. Seria necessário prudência para não terminar o banho com espuma espalhada. À medida que enchia o baldinho, dispunha-lhe aos poucos, por cada parte ensaboada, com o toque da mão a acompanhar o enxágüe. O som da água caindo sobre a pele gelou-lhe a espinha. Um sentimento primitivo e poderoso tomou o homem. Dominava ritmo, volume e gravidade da água derramada. A percepção do banhar-se, a delicadeza em dedicar atenção às curvas e dobradiças escondidas do seu corpo gorduroso; tratava-se de um trabalho paciente e ao mesmo tempo (e novamente) de descoberta. Era sensual, extravagante. Sentiu uma liberdade constrangedora em devassar-se. Ao acabar a água do balde, uma tristeza tomou-lhe. Saiu do box. Na frente do espelho a secar-se, via o seu corpo, antes repulsivo, com olhos bem mais benevolentes.

Algo diferente aconteceu. Chorou.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Naquele lugar...

Existe o tempo necessário para olhar o céu. Não há prédios e marquizes. É permitido admirar as estrelas, achar constelações e nomeá-las ao bel-prazer. Se satisfaz em conhecer coisas novas, pelo simples prazer de conhecer.
Observa-se a vida das flores, reconhecendo-lhes os odores. A queda das folhas no outono faz pensar a morte das criaturas e o peso do invísivel. É possível ouvir o canto dos passáros, e escrever óperas sobre a natureza. Senta-se na varanda e desfruta-se do toque da brisa no rosto. A conversa com os amigos acontece sem preocupações, confessa-lhes sem qualquer pudor os amores e coisas íntimas.
Alcança-se noção das palavras e seus efeitos, e as dotam de novos sentidos. Faz-se dos palavrões elogios comoventes e criam-se combinações tão profundas que provocam gozo. Gramáticas e sintaxes são elaboradas com o único princípio e fim da compreensão alheia, tornando qualquer desacordo possível de entendimento, sem afetar a variedade dos pontos de vista.
Elimina-se qualquer vontade de morrer, mas não se teme a finitude. Aceita-se a presença da dor como matéria de construção do espírito elevado.Perde-se a noção dos segundos, minutos e horas. Guia-se pela fome e o caminho do Sol e da Lua. Tem-se a virtude da paciência e não se lamenta pelo que não se tem.

Este lugar não tem endereço fixo. Flutua no sítio imenso do desejo, ocupa infinitos hectares de sonho e luta-se ardentemente para alarga-lhe as fronteiras. Mundo real adentro.

sábado, 22 de novembro de 2008

Apocalipse no sertão

Nada acontecia de muito novo naquele interior esquecido por Deus. O ritmo lento, com o sino da Igreja a marcar o tempo, o andar cansado de lá para cá, o burro de osso e carne suportando um peso maior de que o seu, as crianças com a barriga inchada a correr atrás de qualquer bicho. Meio que se esperava o dia de morrer. Nada mudava. Até um dia qualquer, num desses tantos verões...

Estava no meio da tarde, quando chegou um homem na cidade, franzino e calvo, com um andar ereto, carregando uma pequena maleta negra. Atravessando a pequena rua de terra, dirigiu-se ao centro da praça, subiu no velho coreto e retirou um grosso tomo de papéis velhos. Montou uma bancada para apoiá-los, aproximou-se da muretinha de madeira, ajeitou o restinho de cabelo que circundava a cabeça e começou a falar. Não chamou ninguém, mas as pessoas começaram a se juntar para ver o que acontecia.

Parecia que não havia necessidade de dizer algo. Aquele texto tinha o objetivo único de impressionar. As palavras, selecionadas pelo seu impacto fônico, não eram para ser compreendidas, somente sentidas, aumentar a grandeza de quem falava. Os adjetivos, utilizados para ornamentar a retórica, construindo a imagem grandiloqüente dos substantivos a que emprestava qualidade. E quantos circunflexos e proparoxítonas não estavam contidas em seu discurso!? Sim, era belo, na voz grave daquele homem, mas em texto, as frases e orações diziam pouca coisa, ou nada. Era elogiável o seu talento para declamar, o controle da entonação, que não deixava ninguém dormir; seus gestos enfáticos, tudo era uma encenação teatral de altíssima dramaticidade.

O povo estarrecido olhava como se fosse a sétima maravilha do mundo. Que sabedoria naquele homem! Aplaudiam e gritavam a cada entusiasmo do orador. De terno e gravata, suava em bicas por causa do grande calor que fazia na cidade. Pessoa importante, merecia todo o respeito. A autoridade emanava daquela imagem, que enunciava sons incompreensíveis, mas impactantes; e externava importância em suas vestes.

Começou a chover. Nem o homem nem o povo dispersavam. A lama emergia das ruas de terra em volta da praça. As mulheres levantavam as mãos para o céu, erguiam os seus filhos sobre as cabeças, como se quisessem alcançar uma graça. A alegria nos olhos daquela gente passava uma certa tristeza. Uma pequena cidade no sertão, pouca água, pouca comida, muita miséria e judiação. O que caía do céu naquele instante era um milagre. Algum homem mais ilustrado que passasse por ali pensaria que era um político, ou um pastor, mas ao ouvir a mensagem, não distinguiria nem um nem outro. A multidão cada vez crescia mais, e mais...Chegavam crianças, velhos, mães, cachaceiros, padres, mendigos, trabalhadores. Era a hora do crepúsculo, os sinos não tocaram e o espetáculo continuava.

A praça ficou pequena. A chuva apertava. O vento levara o telhado do coreto. O suor e a água da chuva misturavam-se na tez do homem. Suas roupas molhadas acabaram com o alinhamento em que chegara. Sua voz não tinha limites. Continuava a falar e o povo a assistir. Não havia polícia nem qualquer autoridade. Ninguém sabia quem era aquele homem, mas ele falava bonito. Muitos começaram a chorar, sem saber direito o porquê. Foi gente chegando sem parar. Sem microfone, a voz do orador aumentava a distâncias cada vez maiores, atingindo sempre a um diâmetro mais extenso. Como era possível? Não havia idéia, mas também quem parou para pensar nisso? Em pouco tempo, a multidão ultrapassava os limites da cidade, penetrando por suas poucas ruelas, em todas as direções possíveis.

O tempo passava, a chuva a cair, cair,...o homem a falar, falar.....e ninguém saía do seu lugar, mas chegavam. Nunca chovera tanto por aquelas paragens, nem tanta gente havia se visto. Mas ninguém ligava. Parecia uma espécie de encantamento que o homem careca, aliado à chuva, fazia no povo. Os papéis, que serviam de referência ao orador, há horas virara uma pasta de celulose. Já não fazia diferença. Aquele homenzinho estava encarnado, falava já tudo de cabeça. Cada vez que chegava mais gente, mais a chuva apertava, e mais alta e grave a voz ficava.

A lama engrossava e avançava sobre o tornozelo das pessoas. Repentinamente, começou a trovejar. Alguns minutos depois, raios começaram a cair sobre as casas, a incendiá-las. Em vez de apagar, a água que caia do céu aumentava as labaredas. Mesmo assim nada era percebido, e mais gente, quase que brotando da terra, chegava. Choros, gritos, urros, sussurros, gemidos de prazer. Ouvia se de tudo da massa, mas como um mero pano de fundo ao som que vinha do centro.

Já avançava pelo meio da madrugada. Toda a gente pobre e miserável do mundo parecia estar reunida naquele momento em volta do velho coreto. Toda a sede, a fome, o frio e a dor encontravam-se ali, e haviam sido esquecidos. De alguma maneira, como algo sem explicação, havia felicidade naquelas pessoas. Um trovão longo e estrondoso ressoou, superando a gravidade do orador. Mas o barulho vinha da terra, e ela começou a tremer. Partindo do coreto, imensos buracos começaram a abrir-se das rachaduras no chão, a engolir todos. Os casebres em fogo imergiam dentro de imensas chamas subterrâneas. Mas ninguém se desesperava, ninguém corria. Todos se resignavam.

Pela manhã, somente o que sobrara de toda a cidade foi o coreto. Sobre ele, a silhueta de um homem, petrificada. Nunca ninguém entendeu o que acontecera. Durante anos e anos, cientistas tentaram arrumar uma explicação. Mas não havia. Os devorados pela terra não deixaram memória, identidade ou lembranças. Ninguém dera pela falta deles.Por décadas e décadas reinou a felicidade. O sertão virara mar e toda a miséria daquela região deixou de existir. Oraram a Deus.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Sonho

Ao entrar no quarto, a irmã estirada. A cabeça ensanguentada, aparentemente esmagada, quase dentro do chão. A avó e a mãe abrem a porta em seguida. Choros de desespero ante o sangue demarrado. Gritos de socorro, uma delas ergue o corpo de encontro ao seu. Pensam que está viva. ¨Deixem-na, está morta¨. Omite-se o complemento, que enche o peito de dor. ¨Ela se suicidou¨.

Ao despertar, sem sustos, somente alívio, pressentimento, tremor. Mas disso, só ele sabe...

Ainda há tempo!

domingo, 9 de novembro de 2008

Em algum sábado à noite ...

Quero aproveitar esta noite. Não vou para a gandaia, muito menos encontrar a mulher amada. Não vou me encher de drogas, nem encontrar aqueles velhos amigos para relembrar nossos momentos memoráveis. Definitivamente não!

Esta noite de sábado, onde a maioria dos jovens de minha idade estão se acabando na mais pura diversão, aproveitando a flor da juventude, cá estou,completamente sozinho. Também sem cerveja, cigarros ou televisão. Só há meus pensamentos, incrivelmente calmos, a lâmpada acesa da sala, o barulho do ventilador de teto nesta quente noite de primavera.

Ao contrário do que possam pensar, não há nostalgias ou frustrações.Reina uma certa paz de espírito, a respiração calma, um sutil inebriamento de sono. São aproximadamente onze horas da noite, embora não importe muito. O corpo descansa no sofá, o queixo nas costas da mão esquerda. A mente trabalha sem pressa. Na mão direita, um lápis, a escrever numa folha de caderno.

Anota-se as divagações desse momento suspenso, onde tudo parece sem importância. A ponta do grafite desenha as letras de uma estória sendo contada (e esse é o exato momento da criação) e registrada, como uma oferenda do tempo presente ao tempo futuro. A estória de uma noite que um homem dedicou somente a ele próprio, a contemplar seus pensamentos em palavra escrita.

Qualquer esforço encontra-se ausente. Os segundos e minutos não são percebidos, pois nada há que lembre o tempo. O sentimento é de um estranho prazer, sem êxtase, medido e tranqüilo. Não se consome, não se relaciona, não se deseja. Não há lembranças. Só eu existo, nesse diálogo silencioso comigo mesmo. Não há utilidade para nada, ou interesse, somente um homem, que numa noite, não quer fazer nada além de escrever sobre sua falta de vontade em fazer algo sem ser escrever deitado sobre a sua noite desinteressante.

Há desânimo, mas não tristeza. Uso as palavras do jeito que quiser, no tempo verbal que bem entender, na pessoa que me der na telha. E se eu quiser repetir as palavras, frases, orações inteiras, eu faço. Aqui eu mando mesmo sem estar com muito saco para mandar. Pinto e bordo. Classifico e nomeio as coisas do jeito que quiser. Posso ser viado, pedófilo, maconheiro.....até flamenguista. Aqui, nenhuma categoria do convencional mundo social vale. É meu, só meu (e não há posse, pois só há eu) , e faço desse reino das minhas letras o lugar das minhas realizações e desejos (mesmo que nenhum me acometa nesse momento).

E pouco importa se essa noite não valer de nada. Ela foi feita pra não valer, pra não se viver, apenas deixar passar, como passa enquanto penso no ponto final depois de escrever fim.

sábado, 11 de outubro de 2008

Halls

Se não posso sentir da tua boca o gosto,
Fico com o gosto que a tua boca prova

Gozando em língua esse doce fogo
Uma lembrança que o sabor aflora

Lembrar o doce que essa língua goza
num desejo que me consome em fogo

Um doce gozo que aflora em fogo,
que queima tanto que me apavora.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

04/08 156/1388
CD: Pacote de 28 músicas baixadas do E-Mule, Mallu Magalhães
Filme: Um Grande Garoto, de Paul e Chris Weitz
Ensinamento do dia: Tomar um copo de refrigerante antes de dormir pode causar desarranjos gástricos terríveis.
Corpos de Mulher, Comida, Alcool, Televisão, Cigarros. Os sentidos de Alex eram absorvidos. E a sua personalidade.

Alex passou o domingo consumido pelos sites pornôs. Além de excelentes ensejos para a masturbação, ofereciam uma ampla gama para a consumação do ato sexual no mundo real. Putas, sexo. As punhetas não saciavam. A possibilidade de ter uma mulher, de esfregar sua boca e pênis em um corpo concreto, devorou o seu desejo. Pensamentos. Quisera resistir. Tentou. Ao sair de casa na segunda pela manhã, levou a agenda com os tentadores números de telefone.

Avenida Rio Branco, número 156, sala 1833. A voz feminina que lhe informou o endereço era doce e incrivelmente provocante. Cedeu, iludindo-se de que seria a última vez. Subiu o elevador do prédio comercial imaginando no que iria fazer como uma experiência para os sentidos. A sala do décimo oitavo andar tinha um aspecto asséptico. As putas tinham cara de putas. Eram gordas, com cabelo alisado, artificialmente produzidas segundo a preferência estética difundida pelos meios de comunicação. As três moças se apresentaram, com um ar amoroso e uma fala mecânica. Alex escolheu Kelly.

Não queria consumí-la rapidamente, queria aproveitar aqueles instantes para descobrir-se, de uma maneira que não sabia definir. Pagou uma hora, dinheiro que lhe faria falta, que poderia ser útil em outras coisas. Oitenta reais. Tirou a roupa, tomou uma ducha quente, preocupado em não molhar os cabelos. Odiava indagações, lhe impelia à culpa. Também preocupava-se com a sua carteira, que deixara no quarto. Tentou ser rápido.

O quarto era como um escritório, de paredes feitas de um fino tapume branco, típico de repartições. Cama, mesa de massagens - afinal era uma ¨casa de massagens¨- revistas de sacanagem, um frigobar, uma rádio sintonizada numa estação popular. O ar condicionado era forte. Sentia frio. Saído da água quente, pensava no resfriado que poderia pegar. Kelly entrou. Era gorda, cheia de estrias, tinha de bonito só o rosto. Ofereceu uma massagem a Alex, prontamente aceita. Queria aproveitar bem aquela hora, os complementos íntimos que ficassem para depois. A mulher começo a passar as mãos pelas suas costas, intermitente, desengonçada, era certo que não tinha o menor jeito para a coisa. Deitado de bruços, Alex não relaxava, pensava no tempo. Não passava, sentia tédio. A mulher pediu que virasse. Colocou-lhe o preservativo com a boca. A trepada foi péssima. A visão daquele monte de carne com nome de mulher não o excitava. Gozou rápido, como sempre. A vaca riu. Apesar de impaciente, Alex fez força para ficar até o fim daquela hora. Kelly reiniciou a massagem. O que fazer ante a ditadura do relógio, pensou o jovem. Aquelas mãos grossas passeando pelo seu corpo não lhe causavam prazer ou relaxamento de espécie alguma. Percebia a insatisfação de Kelly pela sua dispersividade, parando a todo momento, inventando desculpas para sair do recinto (melhor nome não traduziria o sentimento de prisão que Alex sentia por aquele espaço). Uma dor de cabeça surgiu-lhe. Vontade de fumar. Após umas palavras gentis e apáticas às putas, pagou e foi embora. Antes de sair, percebeu um quadro, uma figura masculina, postada de frente, abraçando uma feminina, ambas desnudas e sem rostos. Pensou no significado daquele quadro. Pelo menos aquela merda de puteiro tinha uma decoração inteligente.

Ao sair, o jovem ficou refletindo sobre o que fizera. Novamente não conseguiu resistir a sua compulsão, a sua necessidade de consumir. Sentiu-se culpado por aquilo, por sua ansiedade e inércia. Já sabia tudo aquilo de antemão. Fumou uns cigarros, caminhando a passos lentos pelas ruas do Centro. Procurou um bistrô, para tomar um café e escrever sobre a sua experiência. Infantil ilusão, ingênua construção narcisística de uma imagem de intelectual. Nada havia de aprendizado. Criou um personagem com um nome fictício e contou sua estória com palavras de pouca expressão, rápido e impacientemente- o tempo de uma xícara grande de capuccino. Na saída, comprou outro cigarro, lamentando-se com estilo de sua vida infeliz.

sábado, 2 de agosto de 2008

O homem podre na noite

CD: Joshua Tree, U2

Filme: Mundo Cão,de Terry Zwigoff.

Ensinamento do dia: òculos escuros em lugares fechados é uma arrogância ridícula.

Anisha usava calça jeans, camisa branca sem estampa, tênis olympikus de camurça e óculos de grau com armação preta e grossa. A noite era escura e nublada, prometia chuva, mas fazia calor naquele sábado à noite. Saiu sozinho, sem saber muito bem para onde, nem porquê. Sabia somente que queria se divertir, e que certamente não se divertiria. Não perdia a vontade de querer ser um jovem normal. Assim que saiu de casa, acendeu seu cigarro. Seus dentes começavam a apodrecer, alguns já haviam caído, e nas ruínas de sua arcada, Anisha passava as línguas, nervoso, com medo de um câncer de boca. Tinha medo de morrer. Tinha medo de tudo. Queria acabar com isso.
Pegou um ônibus. Foi para a Lapa. Era onde sempre ia parar, por mais que quisesse evitar a mesmisse e criar coisas novas para a sua vida. Queria beber muito, dançar, ser admirado, arrumar uma mulher para fazer sexo. Queria curtir tudo sem culpa. Era difícil. Anisha não tinha nada em sua vida, emprego, amigos, personalidade....Só tinha seus pensamentos de culpa e condescendência consigo. Chegou ao seu destino. Começou a andar, perdido, olhando as pessoas com inveja e admiração, achando-se deslocado mas querendo se alocar. Tinha tesão nas meninas, e nos meninos. Parou em frente a uma boate alternativa. Tomou umas cervejas e fumou uns cigarros, fazendo um estilo falso, vendendo sua imagem, esperando o tesão alheio. Entrou na casa. A música estava boa. Pediu uma cerveja, acendeu outro cigarro e começou a dançar. Tentava pensar que não precisava de ninguém para se divertir e ser feliz. Mas via os outros acompanhados e batia o sentimento de solidão. Dançava sem saber dançar, mas estava longe de não se preocupar com a opinião alheia. Os olhares alheios o oprimiam, sentia-se ridículo, não um louco, loucos são cools, mas um babaca querendo aparecer e digno de pena. Parou e foi ao bar. Pediu outra cerveja. Tinha vergonha de puxar conversa. Se achava feio e sem graça.

Uma menina o atraiu. Tinha cabelos negros, tatuagem nas costas e óculos parecido com os seus. Seria a trepada da noite? A mulher de sua vida? Começou a dançar perto da menina. Tentou trocar olhares com ela. Ela estava acompanhada de amigas. Achou a situação absurda, como ele, tão...tão....tão....demodé, poderia abordar aquela moça. - Olá, achei você linda. - Oi, poderia conversar contigo?- Sua beleza me trouxe até aqui, te desejo absurdamente.Tudo o que pensava parecia insincero, sem imaginação, indigno de atenção. Parou de dançar e voltar para o bar. Estava a menos de uma hora lá dentro. Resolveu ir embora.

Saiu da boate e ficou perambulando pela Lapa. Queria ser legal, mas não conseguia. Ficou um tempo admirando os travestis. Tinha tesão neles. Mas também tinha medo, dos seus desejos, das consequências de sua compulsão pelo prazer. Este era um tabu para ele: prazer!!! Sempre sentia culpa do prazer, não conseguia se livrar do prazer. Pegou o ônibus e voltou para a casa.

Eram duas horas da manhã. As ruas vazias do seu bairro. Chegou em casa, foi para a frente do computador e tocou uma para um vídeo de um belo transsexual e uma mulher. Lavou as mãos da porra que a borrava, comeu três cachorros quentes com refrigerante, escovou duas vezes seus dentes (crente de que ia fazer de sua boca menos podre) e foi deitar-se no sofá onde dormia. Ficou algum tempo olhando para o teto, pensando na vida. A partir de amanhã seria diferente. Sentiu preguiça de pensar. Dormiu.