domingo, 22 de maio de 2016

Notas sobre a raiva e o ódio

A raiva quer bater, ódio destruir. Raiva é gripe, ódio câncer. Raiva é como unha no quadro negro, ódio um zumbido agudo e contínuo, barulho de gota permanente. Raiva expulsa, ódio elimina. A raiva é dor gritada, ódio espinha de peixe.
A raiva pode ser expressão de amor. O ódio é tão avesso do amor quanto dois irmãos. A raiva tem o limite de tempo que dura uma indignação. Ódio dura gerações, eras, reencarnações. A raiva é lógica, ódio não ‘é’. Raiva é revolta, motim, sublevação, insurreição, revolução. Ódio é extermínio, genocídio, crimes contra a humanidade. A raiva é individual, momentânea, expressiva, instintiva. A raiva é animal, ódio só poder ser humano. O ódio é a vontade capaz de extinguir uma espécie.
Não se inventou uma linguagem para o ódio. Ódio é o mais intenso sentimento de autoconservação e de autodestruição. O ódio só conhece o homicídio e o suicídio simultâneos. O amor pode se transformar em ódio como dois negativos multiplicados se transformam em positivo. O ódio não se transforma em nada, não transforma nada. Ódio é erva daninha de raiz profunda. Ódio é infertilidade. Um campo contaminado por ódio não floresce por cinquenta gerações. Ódio é radioatividade.
A própria ideia de inferno foi construída pelo Ódio. Assim como toda ideia de um Deus onipotente. Só um Deus que ama pode odiar, só um Deus que perdoa pode castigar. Toda ideia de perfeição baseia-se no ódio.

Por isso nascemos em pecado: para nos odiar. Se apenas nascêssemos.... 

domingo, 15 de maio de 2016

Domingo

No almoço comi tanto que quase morri. Perto do hospital, uma roda de samba me fazia lamentar a cuíca de gemidos senis a que estava destinado.

No quarto de hospital conversei com um pregador sobre a Bíblia na medida em que a conversa, e não a pregação, fosse possível. Nos últimos tempos está mais fácil ou menos difícil conversar sobre religião do que política.

Na volta para casa, ainda em Acari, um cachorro quase me atacou. Um homem afastou o cão, de forma mais civilizada do que os homens se separam. Fiquei aproximadamente uma hora tremendo e pensando nas razões espirituais do ataque. Por mais que ache as aspas bonitas, acredito no sobrenatural.

No metrô avistei um homem negro de chapéu de palha com cabelos e barba branca que me lembrou um preto velho e me apaziguou um pouco. Ao desembarcar no Estácio, um jovem com deficiência tombou e algumas pessoas o auxiliaram. Enquanto  escrevo em pé, à espera da composição no sentido Afonso Pena, uma mulher de meia idade me encarava com hostilidade. Neste instante, ao descer para casa, uma idosa me pede para esperá-la, pois o elevador do metrô pode não estar funcionando. Está e levo pelas escadas o agradecimento pela gentileza.

A praça Afonso Pena está cheia de crianças. São seis da tarde. Uma batida de funk preenche o fundo de vozes agudas e dos atritos dos pés velozes. Sento à luz fraca dos refletores altos e escrevo.

Uma latinha de cerveja. Sim, agora.

Na subida da rua, dois cães começam a se agredir no momento em que passo. Não sei o que carrego, não sei do mundo, do sobremundo ou do submundo, mas escrever me alivia.



Nostalgia

Dia 20 de janeiro vou à Igreja de São Sebastião.

Dia 13 de maio dedico o primeiro café preto do dia ao Preto Velho.

Não faço por fazer, mas por querer fazer. Não sei como fazer, não precisa. Basta ir à igreja, acender uma vala, comprar umas fitas do padroeiro com a intenção de distribuir aos amigos. Não sei rezar. Faço uma prece sem fé e digo em silêncio um Padre Nosso como quem canta o hino nacional.

Basta fazer o primeiro café do dia. Água pra ferver, pó de café, coador. Uns dedos num copo, coloco na janela. Depois de um dia, retiro o copo, mofado de sereno. Nada peço, e se peço, também é sem fé. A fé não é uma opção. Nunca soube a fé, nem a senti.

Faço mais para lembrar, para reviver a lembrança. Faço para ouvir meu pai contando a estória de como quase morri de pneumonia quando nasci e da promessa que o meu avô fez por mim para que sobrevivesse. Faço pelo carinho da minha vó que colocava o café todo 13 de maio para que o Preto Velho me protegesse. Em toda ocasião possível, em todo mínimo sucesso que alcançava, me lembravam disso. Sujeito abençoado devia ser.

Mas o mundo que me prometeram quando criança não se cumpriu. Meus heróis se desfizeram na miséria de sua realidade ou morreram. A magia se diluiu em superstição. Não esse mundo que me contaram. Não foi pra ele que me preparei.




quarta-feira, 11 de maio de 2016

Notas sobre o mal

"Aceita-te meu mal que aceitareis o teu."

Acordei pensando no mal. A criação humana mais negadora da existência. O ser humano que se marginaliza, exclui tua parte essencial. A invenção do mal dificultou a vida. O mal foi criado para que pudéssemos conviver. Para viver-com, abrimos mão de parte substancial do viver. Sobrevivemos a maior parte do tempo.

De que adianta não me aceitar o hábito. Fui criado para este bem estranho ao meu próprio organismo embora tão orgânico. Devo me punir simplesmente por existir. Qualquer outra forma de existência é o próprio inferno. Não preciso de Jesus porque ele se encontra em mim o tempo todo. A natureza desejante do meu corpo e a natureza civil da minha alma. Minha alma (meu juízo) jamais aceitará meu corpo. Qualquer possibilidade de vida depende da chibata.

domingo, 1 de maio de 2016

Notas sobre a tristeza

Todos não têm coragem, mas eu sei, todos sabem. O pecado é a pronúncia da palavra que nos rebaixa à pobreza da humanidade. Talvez na prece, pela culpa associada, consigamos dizer. Não somos cruéis nem indiferentes. Apenas desejamos, sem querer, e esse lugar sem moral é inadmissível. Se falamos de nosso desejo, o véu da infâmia logo nos destituí de qualquer dignidade. A dignidade é esta qualidade atribuída a renúncia de nossas fraquezas. É a garantia de nossa cidadania diante de cada ser humano, auto-instituído Deus-julgador.

Gostaria de uma igualdade social estabelecida a partir de nossas covardias e medos. Um mundo sem dedos em riste, palavras de ordem, lições. Uma ausência de hierarquias morais que nos unisse na solidão e solidariedade da condição humana mais profunda em sua total fragilidade.