segunda-feira, 29 de março de 2010

Desde o fim de sábado, ando com uma siquizira que ronda entre a dengue e a gastroenterite. Como se as coisas já não andassem lá as mil maravilhas, agora vivo nesse vai e vem, entre a UPA e a privada.

Perdendo as aulas da pós-graduação, talvez mais do que isso, um tempo precioso. É preciso calma, paciência (afinal, foi a falta dela que até aqui me trouxe). Um momento aberto no tempo, o que acontece a cada segundo, enquanto minha barriga faz barulhos estranhos.

Estou suando, e este é um bom sinal.

terça-feira, 16 de março de 2010

O amor segundo Adriano

Os cínicos e os moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a, contudo, menos indispensável do que aqueles, visto que eles podem perfeitamente prescindir dela. Do moralista tudo se espera, mas espanto-me que o cínico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros receiem seus próprios demônios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem, esforçando-se por aviltar o prazer a fim de lhe tirar o poder quase terrível sob o qual sucumbem, e diminuir o estranho mistério no qual se sentem perdidos. Acreditaria nessa associação do amor às alegrias puramente físicas (supondo-se que tais alegrias existam) no dia em que visse um gastrônomo soluçar de prazer diante do seu prato favorito, tal como o amante sobre um ombro amado. De todos os jogos, o do amor é o único capaz de transtornar a alma e, ao mesmo tempo, o único no qual o jogador abandona-se necessariamente ao delírio do corpo. Não é indispensável que aquele que bebe abdique da razão, mas o amante que conserva a sua não obedece inteiramente ao deus do amor. Tanto a abstinência quanto o excesso não engajam senão o homem só. Salvo no caso de Diógenes, cujas limitações de caráter de racional pessimista definem-se por si mesmos, toda experiência sensual nos coloca em face do Outro, acarretando-nos as exigências e as servidões da escolha. Não conheço, fora do amor, outra situação em que o homem deve decidir-se por motivos mais simples e mais inelutáveis. No amor, o objeto escolhido deve valer exatamente seu peso bruto em prazer, e é ainda no amor que o amante da verdade tem maiores probabilidades de julgar a nudez da criatura. A partir do desnudamento total, comparável ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e a da prece, maravilho-me ao ver renovar-se, cada vez, a complexidade das recusas, das responsabilidades, das promessas, das pobres confissões, das frágeis mentiras, dos compromissos apaixonados entre nosso prazer e o prazer do Outro, tantos laços impossíveis de romper e tão depressa rompidos! Este jogo cheio de mistérios, que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa, pareceu-me belo o bastante para consagrar-lhe uma parte de minha vida. As palavras enganam, especialmente as do prazer, que comportam as mais contraditórias realidades, desde as noções de aconchego, doçura e intimidade dos corpos, até as da violência, da agonia e do grito. A pequena frase obscena de Posidônio sobre o atrito de duas parcelas de carne, que te vi copiar nos teus cadernos escolares com aplicação de menino ajuizado, é incapaz de definir o fenômeno do amor, assim como a corda que o dedo faz vibrar não pode explicar o milagre dos sons. Essa frase insulta menos a volúpia do que à própria carne, esse instrumento de músculos, sangue e epiderme, essa nuvem vermelha de que a alma é o relâmpago.

Confesso que a razão permanece confusa em presença do prodígio do amor, da estranha obsessão que faz com que essa mesma carne, que tão pouco nos preocupa quando compõe nosso corpo, limitando-nos somente a lavá-la, nutri-la e, se possível, impedi-la de sofrer, possa inspirar-nos uma tal paixão de carícias simplesmente porque é animada por uma personalidade diferente da nossa e porque representa certos traços de beleza sobre os quais, aliás, os melhores juízes não estariam de acordo. Aqui, como nas revelações dos Mistérios, tudo se passa além do alcance da lógica humana. A tradição popular não se enganou ao ver no amor uma forma de iniciação e um dos pontos onde o secreto e o sagrado se tocam. A experiência sensual equipara-se ainda aos Mistérios quando a primeira aproximação provoca nos não iniciados o efeito de um rito mais ou menos assustador, escandalosamente desligado de todas as funções até então familiares, como comer, beber e dormir, parecendo antes motivo de gracejo, vergonha, ou terror. Da mesma maneira que arrasta-nos para um universo diferente, onde, em situação normal, nos é vedada a entrada e onde cessamos de nos orientar, uma vez apagado o ardor e extinto o prazer. Cravado no corpo amado como um crucificado à sua cruz, penetrei em certos segredos da vida que começam a desvanecer-se da minha lembrança por efeito da mesma lei que faz com que o convalescente, depois de curado, cesse de encontrar-se nas misteriosas verdades do seu mal, e que o prisioneiro posto em liberdade esqueça a tortura, e o triunfador a embriaguez da glória.

Por vezes sonhei de elaborar um sistema de conhecimento humano baseado no erotismo. Uma teoria do contacto na qual o mistério e a dignidade de outrem consistiriam precisamente em oferecer ao Eu esse ponto de ligação com um mundo desconhecido. A volúpia seria, nessa filosofia, a forma mais completa e mais especializada de aproximação com o Outro, uma técnica a mais colocada a serviço do conhecimento de uma individualidade estranha à nossa. Nos encontros, mesmo os menos sensuais, é ainda no contacto que a emoção nasce ou morre, tal como acontece com a mão um tanto repugnante da velha que me apresenta uma petição, a fronte úmida do meu pai em agonia, ou a chaga lavada de um ferido. As próprias relações mais intelectualizadas, ou as mais neutras, ocorrem através desse sistema de sinais materiais: o olhar subitamente iluminado do tribuno a quem explico determinada manobra numa manhã de batalha; a saudação impessoal do subalterno que nossa passagem imobiliza em atitude de obediência; o olhar amistoso do escravo a quem agradeço por trazer-me uma bandeja; ou a expressão apreciadora de um velho amigo ante o camafeu grego com que acabamos de presenteá-lo. Com a maior parte das pessoas, os mais ligeiros ou mais superficiais desses contactos bastam a nosso desejo, ou até o excedem. Que esses mesmos contactos insistam e se multipliquem em torno de uma criatura única até bloqueá-la toda inteira; que cada detalhe de um corpo apresente para nós tantas significações perturbadoras como os traços de um rosto; que um único ser, em vez de inspirar-nos quando muita irritação, prazer ou aborrecimento, nos obsidie como uma melodia ou nos atormente como um problema; que esse ser passe da periferia do nosso universo ao seu centro, que se torne mais indispensável do que nós próprios, e estará realizado o admirável prodígio: assistiremos então à invasão da carne pelo espírito, e não mais um passatempo do corpo.

(Marguerite YOURCENAR, Memórias de Adriano, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. pp.20-1 (6ª edição).)

sábado, 13 de março de 2010

Deus do céu, como "Only by the night", do Kings of Leon, é sensacional! O melhor cd de rock que ouvi desde "Ten", do Pearl Jam.

Não faço a miníma idéia do que fazer hoje. Segunda começa o Mestrado. A que passou foi foda, no pior sentido possível do termo.

Tenho que rever "Dogville",  reorganizar as minhas coisas, meus livros, textos. As coisas andam bem confusas e  tensas.

ENFIM!

domingo, 7 de março de 2010

Outro dia (...)

Outro dia, tive um prazer que nunca havia experimentado. Chegara cedo à comemoração do aniversário de uma amiga, na Lapa, então acabei procurando um bar para tomar uma cerveja, enquanto ninguém chegava. Acabei me alocando na esquina da Lavradio com a Riachuelo, num estabelecimento que já sou freqüentador, mas no qual nunca havia estado sozinho. Sentei e pedi uma Brahma. Ante a ausência da predileta, optei pela Antártica. Quatro e cinqüenta era caro para uma cerveja, mas estava razoável para os padrões da Lapa.

Em tempos de choque de ordem, achar um bar onde possa beber e fumar é quase um privilégio. Oliveira (todo garçom pode ser carinhosamente assim chamado, uma convenção entre meus amigos) trouxe a garrafa, poupei-lhe o esforço e enchi meu copo. Tinha estudado boa parte da tarde no Real Gabinete Português de Leitura e posteriormente no CCBB, procurando bibliografia para uma pesquisa em que estou trabalhando quase de graça (ossos da amizade!). Na noite anterior, dormira pouco, fichando textos importantes e envolto em pensamentos pervertidos. Enfim, estava cansado, e o lugar que haveria de ir em seguida, onde se daria a comemoração para a qual lá estava, não era de meu gosto, cerveja cara, gente empolada, música ruim e sem espaço externo para fumar. Comparecer era uma obrigação de amigo, a qual minha consciência ainda não consegue suportar o peso de não cumprir.

O primeiro gole na Antártica foi maravilhoso, como todos os primeiros goles após um dia fatigante de trabalho. É de um alívio, digamos, ao nível da subsistência, imagino que comparável daqueles que tomam vodca ou uísque para suportar o frio do inverno russo ou escandinavo. Estava com a bolsa pesada de livros que havia comprado horas antes num sebo, e a aloquei no meu colo. Após duas goladas generosas, acendi meu cigarro, e me pus a observar o movimento. Sete da noite ainda era cedo para o “fervo”. Como sempre, muitos mendigos passavam, meninos de rua, alguns engraxates, vendedores de amendoim, até trabalhadores, engravatados, estudantes saindo da faculdade. Aquele era um lugar que as pessoas costumam chamar de “democrático”, pois fica estrategicamente localizada entre o Centro – comercial, empresarial, cultural – e alguns bairros residenciais, como Santa Tereza, Bairro de Fátima, Praça da Cruz Vermelha. Porém não há nada de democrático, pelo menos a noite, dado os preços exorbitantes aplicados na região. Andava realmente desgostando do núcleo da “legítima” carioquice. Maldita revitalização!

Como minha paciência de voyeur não é muito grande, logo me enfastiei, e pus-me a manusear os livros que havia comprado. Abri a primeira página de “O Clube do Filme” e comecei a lê-lo. Este livro trata da tentativa de um pai canadense, crítico de cinema, de proporcionar alguma educação ao filho de 16 anos, dando-lhe a oportunidade de deixar de freqüentar a escola, na qual ia de mal a pior, por uma atividade diária de assistir três filmes, a escolha do pai. No dia posterior, descobriria que o David Gilmour, autor do livro, não é o do Pink Floyd, como um amigo meu havia dito. A leitura cativava-me a cada linha, e não parei de ler. Bebia, fumava e lia. Tudo ao meu redor desapareceu e senti uma sensação subitamente agradável. Nada tirava a minha atenção, a não ser quando a garrafa terminava. Ficar só sempre foi um problema para mim, e estava feliz de não ser naquele momento. Aos poucos, senti a onda da cerveja subir-me a cabeça, já na terceira garrafa. Embora a leitura continuasse agradável, fechei o livro e pedi a conta. O resto da noite não interessa, pois não foi agradável. O que me leva a acreditar que, momentaneamente, a solidão tem me feito feliz. Estou meio cansado do “fervo”, de ouvir, de trocar alguma coisa. Melhor, não estou tendo necessidade disso, de algo que sempre me foi uma constante. Ando encontrando os outros, na maioria das vezes, mais como dívida de amizade do que por prazer.

Falta-me ainda uma coisa. Quer dizer, falta-me muita coisa. Plenitude, só morrendo. Refiro-me aquilo que me falta com mais urgência.  Liberdade para amar, ou amar com liberdade. De certa forma, ainda me parecem palavras paradoxais. Talvez o primeiro passo tenha sido dado para desconstruir essa impressão. Amanhã tenho analista.

Vou falar de mulheres.