sábado, 24 de dezembro de 2016

Observações

Cerveja não mata sede, cerveja mata calor.

Retornando quase em férias de Big Field na vertigem de um fervo capaz de indignar o próprio cramunhão, paro no Babilac para tomar a digníssima. Na esquina dos meus primeiros tempos, um vendedor de coco faz sua freguesia de mães com os seus.

Aqui mesmo, faz quase três décadas, sobrevivia o tripeiro. Atravessando a rua, o Cotó, fruteiro de um braço só. No embaçamento do bafo quente que emerge do asfalto, um oráculo às avessas me revela a identidade infanto-afetiva entre vida pregressa e presente.

E a cerveja continua gelada.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Redemoinho ou o vento que nos move

Que passa?

O vento.

Que vento,
se as folhas não se movem
e nada sinto?

Vem de dentro,
se vê.

O quê?

O movimento dos corpos.

Que será?
Milagre? Magia?
Assombro?

Não, é desejo.

Olhe o redemoinho.

A música que cresce.

Mas jaz o silêncio.

Não vê?

Nada ouço.

Ouço o que vejo,
sinto o que ouço.
Danço também à força do vento.

Este mesmo que vemos?

Sim.

Brasileiros

Não sei do que seríamos capazes,
nem do que faríamos.

Nos é tão difícil reconhecer nossa africanidade,
bem mais visível.

Perceber uma brasilidade sem imperialismos regionais,
então, quase impossível.

Nosso espelho é a deformidade das heranças malditas
da escravidão e da colonização.

Ainda não somos latinoamericanos,
ainda não somos negros,
e se somos brasileiros
é muito pouco por irmandade.

Reconhecer em ti uma beleza negada por tanto tempo
não é simples.

sábado, 19 de novembro de 2016

Insight

Convivo mal com a abstinência
tanto quanto amores perdidos.
Esta falta que me faz
e a que tanto dedico
é a minha insensatez
de suportar a vida. 

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Sozinho

Ando tão sozinho comigo
que aprecio o toque do tempo
 no vento da noite.

Ando tão sozinho comigo
que respiro pelas narinas
o oxigênio existente.

Ando tão sozinho comigo
que até encontro
meu espírito presente.
(inclusive acredito)

Ando tão sozinho comigo,
tão sem pressa da vida,
um destemido sem valentia.

Ando tão sozinho comigo.
Acordado e tranquilo
com vozes, cores, odores.

Ando tão sozinho comigo
que nem as dores
me tiram de mim.

Ando tão sozinho comigo
quase entorpecido
a tudo sentindo.

Ando tão sozinho comigo
que até percebo

que existo.

sábado, 3 de setembro de 2016

Caminho

Nos desencontramos, mas nunca nos perdemos.

Estou no meu caminho, que passa por você e o mundo inteiro.
Você e o mundo inteiro foi a rota que tracei.
Desconheço o que é você e o mundo inteiro,
mas o mundo inteiro é você que quero.

Não preciso saber o mundo inteiro para querê-lo,
assim como a você.
Porque pra te querer tem que ter o mundo inteiro,
e não existe o mundo inteiro sem você.

Eu, você, o mundo inteiro.

Caminho.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Notas dispersas

E quando saímos à rua, olhamos e sentimos em busca, sem saber o que falta entre nós. Tentamos preencher com o mundo ao nosso alcance e atingimos o pleno por pouco tempo. O corpo dorme, e descemos da altitude à depressão de quando abrimos os olhos. Não nos contentamos, e vivemos à espera.
Somente descobrimos quando compreendemos a falta como nossa humanidade inevitável e desistimos de saber.

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Esperava paciente o momento em que as ondas chegariam. Quando as senti penetrando o salão, o convite para o abraço foi minha escolha pela fatalidade. Se não houvesse permissão, nos salvaríamos. Não quisemos, e afundamos pouco a pouco na fluidez de nosso peso desfeito sob a força em movimento do que nos afogava. Passamos a existir numa totalidade que nos preenchia , ondas, eu, ela, o espaço.
Abrimos os olhos para a salvação indesejada. Cúmplices, nos despedimos, à espera da próxima inundação.
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sexta-feira, 1 de julho de 2016

Descrição de sonho

Manhã de primeiro de julho.

Embarcava clandestinamente na estação de trem subindo pela plataforma. Parecia Campo Grande. Aproximadamente três homens, talvez brancos, aproximavam-se, ameaçadores. Um deles carregava um bastão que parecia um cano de pvc. Sinto a ameaça, mas sou alcançado e o homem me derruba num ataque com o bastão nas minhas pernas.

Os homens me cercam, mas consigo levantar e subo pelas escadas da estação. Vislumbro  a vontade de pular sobre a composição que chegava à estação. Há um lapso e me vejo andando por ruas escuras. Nas portas das lojas fechadas, observo moradores de rua, de aparência suja, se preparando para dormir. Sigo caminhando e observando, amendrontado.

Sinto-me impregnado pela marginalidade que me cerca.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Sonho

Hoje de madrugada dirigi três horas e meia rumo ao Sul. Era início de Carnaval. Cheguei a uma localidade próxima a fronteira com a Colômbia e quase fui, mas regressei para o Carnaval.

Não sei dirigir e a fronteira com a Colômbia fica ao Norte. Tive pena de ter acordado e descoberto que não era Carnaval.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Carta de amor


Não recordamos e todo esforço seria vão. Se soubéssemos, toda a existência deixaria o tempo. “No começo era o verbo, e o verbo era Deus.” Fomos pré-mitológicos porque somos de antes do verbo. Viemos da anti-matéria de vontade pura. Naquela amemorialidade, havíamos em reticências de cosmos, tantos e tamanhos quanto o imensurável, o incalculável, o intraduzível. A Ausência tão imensa quanto o reverso último da onipotência

Acho que a primeira lembrança foi o início. Começou no exato instante em que indaguei se estávamos certos. Não recordo dos objetos das certezas porque não existiam. Foi a palavra nosso pecado original, pois dela nasceu o mundo. O certo deu a partida do tempo que foi pensamento. Pensamento é semente forte que brota em qualquer terreno e aflora. E tudo o que vinga um dia morre.

Te indaguei a palavra e também começastes a pensar. Tentastes recusar inutilmente, pois depois do som logo semeou. Apareceu a mudança. Era inevitável que com o certo viesse o errado, e já eram duas sementes. Não tivemos escolha e nascemos.

Começamos a nos reparar o que antes apenas víamos, e tentamos fazer o certo. Apareceu o respeito mútuo, as noções de espaço e tempo alheios. Da palavra brotada em pensamento floresceu o mundo, e recusá-lo era errado.

Tivemos, e tudo o que tínhamos passou a ser nosso. Viver era o rastro deixado pela extensão dos planos efetuados nas horas, dias, anos. Chamávamos de conquista o acúmulo do que passávamos pelo tempo. Mas viver nunca bastava, sempre significava, nos despistando de nossas necessidades inexistentes. Descobrimos assim a infertilidade das ervas daninhas, diziam que éramos felizes, ainda dizem e de fato nos achamos nesta condição.

Não sabemos nossa fertilidade porque ainda é pouco, tão pouco que sempre será por mais que seja. Nos amamos pelo que nos falta.

Um dia nos reencontraremos aquilo que era antes do mundo. Este imenso nada que nos falta. Como o coração de um buraco negro.

domingo, 22 de maio de 2016

Notas sobre a raiva e o ódio

A raiva quer bater, ódio destruir. Raiva é gripe, ódio câncer. Raiva é como unha no quadro negro, ódio um zumbido agudo e contínuo, barulho de gota permanente. Raiva expulsa, ódio elimina. A raiva é dor gritada, ódio espinha de peixe.
A raiva pode ser expressão de amor. O ódio é tão avesso do amor quanto dois irmãos. A raiva tem o limite de tempo que dura uma indignação. Ódio dura gerações, eras, reencarnações. A raiva é lógica, ódio não ‘é’. Raiva é revolta, motim, sublevação, insurreição, revolução. Ódio é extermínio, genocídio, crimes contra a humanidade. A raiva é individual, momentânea, expressiva, instintiva. A raiva é animal, ódio só poder ser humano. O ódio é a vontade capaz de extinguir uma espécie.
Não se inventou uma linguagem para o ódio. Ódio é o mais intenso sentimento de autoconservação e de autodestruição. O ódio só conhece o homicídio e o suicídio simultâneos. O amor pode se transformar em ódio como dois negativos multiplicados se transformam em positivo. O ódio não se transforma em nada, não transforma nada. Ódio é erva daninha de raiz profunda. Ódio é infertilidade. Um campo contaminado por ódio não floresce por cinquenta gerações. Ódio é radioatividade.
A própria ideia de inferno foi construída pelo Ódio. Assim como toda ideia de um Deus onipotente. Só um Deus que ama pode odiar, só um Deus que perdoa pode castigar. Toda ideia de perfeição baseia-se no ódio.

Por isso nascemos em pecado: para nos odiar. Se apenas nascêssemos.... 

domingo, 15 de maio de 2016

Domingo

No almoço comi tanto que quase morri. Perto do hospital, uma roda de samba me fazia lamentar a cuíca de gemidos senis a que estava destinado.

No quarto de hospital conversei com um pregador sobre a Bíblia na medida em que a conversa, e não a pregação, fosse possível. Nos últimos tempos está mais fácil ou menos difícil conversar sobre religião do que política.

Na volta para casa, ainda em Acari, um cachorro quase me atacou. Um homem afastou o cão, de forma mais civilizada do que os homens se separam. Fiquei aproximadamente uma hora tremendo e pensando nas razões espirituais do ataque. Por mais que ache as aspas bonitas, acredito no sobrenatural.

No metrô avistei um homem negro de chapéu de palha com cabelos e barba branca que me lembrou um preto velho e me apaziguou um pouco. Ao desembarcar no Estácio, um jovem com deficiência tombou e algumas pessoas o auxiliaram. Enquanto  escrevo em pé, à espera da composição no sentido Afonso Pena, uma mulher de meia idade me encarava com hostilidade. Neste instante, ao descer para casa, uma idosa me pede para esperá-la, pois o elevador do metrô pode não estar funcionando. Está e levo pelas escadas o agradecimento pela gentileza.

A praça Afonso Pena está cheia de crianças. São seis da tarde. Uma batida de funk preenche o fundo de vozes agudas e dos atritos dos pés velozes. Sento à luz fraca dos refletores altos e escrevo.

Uma latinha de cerveja. Sim, agora.

Na subida da rua, dois cães começam a se agredir no momento em que passo. Não sei o que carrego, não sei do mundo, do sobremundo ou do submundo, mas escrever me alivia.



Nostalgia

Dia 20 de janeiro vou à Igreja de São Sebastião.

Dia 13 de maio dedico o primeiro café preto do dia ao Preto Velho.

Não faço por fazer, mas por querer fazer. Não sei como fazer, não precisa. Basta ir à igreja, acender uma vala, comprar umas fitas do padroeiro com a intenção de distribuir aos amigos. Não sei rezar. Faço uma prece sem fé e digo em silêncio um Padre Nosso como quem canta o hino nacional.

Basta fazer o primeiro café do dia. Água pra ferver, pó de café, coador. Uns dedos num copo, coloco na janela. Depois de um dia, retiro o copo, mofado de sereno. Nada peço, e se peço, também é sem fé. A fé não é uma opção. Nunca soube a fé, nem a senti.

Faço mais para lembrar, para reviver a lembrança. Faço para ouvir meu pai contando a estória de como quase morri de pneumonia quando nasci e da promessa que o meu avô fez por mim para que sobrevivesse. Faço pelo carinho da minha vó que colocava o café todo 13 de maio para que o Preto Velho me protegesse. Em toda ocasião possível, em todo mínimo sucesso que alcançava, me lembravam disso. Sujeito abençoado devia ser.

Mas o mundo que me prometeram quando criança não se cumpriu. Meus heróis se desfizeram na miséria de sua realidade ou morreram. A magia se diluiu em superstição. Não esse mundo que me contaram. Não foi pra ele que me preparei.




quarta-feira, 11 de maio de 2016

Notas sobre o mal

"Aceita-te meu mal que aceitareis o teu."

Acordei pensando no mal. A criação humana mais negadora da existência. O ser humano que se marginaliza, exclui tua parte essencial. A invenção do mal dificultou a vida. O mal foi criado para que pudéssemos conviver. Para viver-com, abrimos mão de parte substancial do viver. Sobrevivemos a maior parte do tempo.

De que adianta não me aceitar o hábito. Fui criado para este bem estranho ao meu próprio organismo embora tão orgânico. Devo me punir simplesmente por existir. Qualquer outra forma de existência é o próprio inferno. Não preciso de Jesus porque ele se encontra em mim o tempo todo. A natureza desejante do meu corpo e a natureza civil da minha alma. Minha alma (meu juízo) jamais aceitará meu corpo. Qualquer possibilidade de vida depende da chibata.

domingo, 1 de maio de 2016

Notas sobre a tristeza

Todos não têm coragem, mas eu sei, todos sabem. O pecado é a pronúncia da palavra que nos rebaixa à pobreza da humanidade. Talvez na prece, pela culpa associada, consigamos dizer. Não somos cruéis nem indiferentes. Apenas desejamos, sem querer, e esse lugar sem moral é inadmissível. Se falamos de nosso desejo, o véu da infâmia logo nos destituí de qualquer dignidade. A dignidade é esta qualidade atribuída a renúncia de nossas fraquezas. É a garantia de nossa cidadania diante de cada ser humano, auto-instituído Deus-julgador.

Gostaria de uma igualdade social estabelecida a partir de nossas covardias e medos. Um mundo sem dedos em riste, palavras de ordem, lições. Uma ausência de hierarquias morais que nos unisse na solidão e solidariedade da condição humana mais profunda em sua total fragilidade.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A sensação da rua deserta à noite está naquilo que o escuro esconde e na solidão do risco.

Com a vida é a mesma coisa.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Fisiologia da vida vivida

Penso tanto com o estômago que não raro sofro de diarreias mentais.
Tenho maior fome nos olhos do que a boca comporta. É tanta que adquiriram dentes e hábitos canibalescos.
Bebo por secura de espírito e empapuçamento de mundo.
Gozei minhas melhores idéias de tal forma que "esta porra" sempre foi literal.
Respiro tanto desejo que o tédio me sufoca e transpiro por excessos.
Esta fisiologia estranha, de vida vivida, nunca foi ensinada em escola de medicina.
Meus médicos, com sabedoria de esquina, atendem com a contagiosa humanidade de quem adoece por identidade pra se curar com poesia.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Mosaico de um cemitério de azulejos.

Sabia que não parava de me olhar um só instante, como se acaso desviasse o olhar, fosse me perder.
Não queria ser abandonada. Apesar de saber que nunca a abandonaria, ela temia. Temor do sono, do sonho, onde existia a possibilidade da minha ausência.
Temor da morte.
Olhava-me como se fosse o último e fino fio que a ligava a existência.
Na compaixão sentida pelo contato do seu olhar, encontrava a fragilidade da vida em mim, um medo de me quebrar no outro.
Nada supre quem parte porque nos partimos, e nunca é mais a mesma coisa. Falta a vida inteira nossa parte partida.
A gente já nasce sendo partido, e vai se partindo até nossa vez de partir. Mas partimos imenso, pois também fundimos, soldando nas partes partidas, crescendo, embora com aqueles buracos deixados pelos encaixes quebrados.

O mosaico de  um cemitério de azulejos.