domingo, 19 de fevereiro de 2017

Maribel

Maribel tinha seis meses quando foi pela primeira vez ao jardim.
Resvalada na grama, viu uma abelha pousar numa flor sem saber o que era uma abelha e o que era uma flor. Então imaginou que a abelha era como ela, e a flor a mãe que a alimentava. Bateu os braços para voar até o peito da mãe, mas não voou. Chorou de fome. A mãe a pegou e a nutriu. Descobriu que chorar era como voar e a fome, asas. 
À noitinha, Maribel acordou no seu berço. Viu uma abelha entrar pela janela. O inseto pousou no seu braço e a picou. A menininha viu que também era mãe, como a flor, e que ser mãe dói. Chorou sem vontade de voar.
Maribel cresceu e teve cinco filhas. Deu a cada uma um nome de flor.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Paranóia Urbana - 25/07/2009

É madrugada, e as únicas luzes acesas são as da tela do computador e a do corredor do andar, que transpassa a janelinha da porta de entrada. Chove e faz um frio ameno. Ouço os pingos, o vento balançando as folhas da mangueira do terreno ao lado. Quando em vez, um barulho de fruta caindo.

Estou sem sono. Cafés, mais a maldita sesta. Todos dormem em casa. Tento fazer os olhos pesarem  assistindo à filmes no computador. Não vou pegar em textos hoje. Amanhã acordo às oito. Ouço passos no corredor. Intermitentes, parecem se esconder. Chaves destravando a fechadura. A porta abre, fecha. Toda a madrugada é assim.

Um som é só um som. Seria bom acreditar. Passos seriam somente passos, se não me informassem diariamente as estatísticas sobre o aumento de assaltos à residências. Portas abrindo de madrugada significariam apenas a existência de pessoas com hábitos noturnos, se acreditasse que na vida não tenho nada a perder. As folhas a caírem das arvores seriam um inofensivo movimento da natureza, se qualquer bicho não domesticado maior do que a minha unha não me deixasse terrificado. A ameaça permeia o tecido do escuro e do silêncio.

Essa não é uma hora boa para passos e fechaduras. É contra o fluxo da vida, a ordem do mundo. Num prédio residencial à uma da manhã deve reinar o mais absoluto silêncio. Logo, sob a sugestão da solidão e da escuridão, sem às vozes costumeiras do dia, tudo é estranho, prenúncio de perigo, aviso para o medo. Onde deveria reinar a paz, ressente-se pela falta do conhecido e inofensivo, as vozes, o movimento e a luz. A cada ruído inesperado, um arrepio, um suspiro, um pulsar mais acelerado.  O stress piora a minha insônia.

Resisto a cama, pois se existe algo pior que essa realidade de filme de terror, são os  pesadelos que costumam me assombrar quando forço um sono inexistente. Acordar com o grito engasgado, com aquele fremido mais assustador do que o próprio pesadelo. Malditos cigarros, que me põem a dormir de boca aberta.  Ficar acordado é uma opção entre os fantasmas do sonho e os que existem em cada ruído. Escolho o segundo, o que com o tempo, acabo por aceitar bem. Nunca nada acontece, apesar de sempre parecer que vai.


domingo, 5 de fevereiro de 2017

Reflexões para um primeiro dia de aula

Palavras-Chave: identidade, experiência, produção de si, construção social



A identidade é uma estória de si sobre si. É histórica na medida em que esta narrativa é sempre produzida “na relação” com o mundo social em que vivemos, o que se refere não apenas aos contatos com nossos parentes, amigos, professores e colegas, mas também com às imagens e discursos que formam nossos valores estéticos (belo e feio), éticos (certo e errado) e morais (bom e mau). Toda “representação” da realidade, na forma de imagens ou de discursos,  são construídas ao longo do tempo. Por isso, históricas.

Embora a construção da nossa identidade seja elaborada por meio de imagens e discursos que precedem a nossa existência, não determinam necessariamente nossa visão de mundo e de nós mesmos. Primeiro porque somos sujeitos de sensibilidades e sentimentos que atuam criativamente no contato com essas representações. Sensibilidades e sentimentos também históricos, logo não determinados. Segundo, porque as representações do real são múltiplas, diversas, contraditórias, enfim, humanas. São frutos de experiências, ou seja, de um encontro criativo do ser humano com a realidade. Portanto, o processo de construção de nossa identidade é aberto e imprevisível, visto que é impossível determinar as possibilidades de intervenção das experiências de mundo sobre as existências individuais.

Fruto do contato com imagens e discursos socialmente compartilhados num mundo histórico e do processo único e indeterminado de cada indivíduo - que são as experiências em si - a construção identitária é indissoluvelmente individual e social. A forma como nos percebemos está sempre relacionada  ao mundo social em que nos encontramos. Somos alguém “em relação”, que nos identificamos dentro de uma linguagem   comunicada numa realidade compartilhada.

A qualidade histórica dessa matéria-prima pela qual distinguimos nossa humanidade e  construímos nossa existência social e individual – a linguagem – se constituí da heterogeneidade de experiências sociais acumuladas ao longo dos anos, décadas, séculos. Pelos signos, significados, imagens e discursos, as vidas humanas compartilhadas no espaço – que convencionamos chamar de sociedade – se fundamentaram, estruturaram e organizaram. O estabelecimento das convenções que conformaram a vida social humana ocorreram em torno da seleção, dentro da heterogeneidade, de determinadas categorias, historicamente consideradas úteis parao convívio. Como todas as escolhas, também excludentes de outras formas de representação e percepção do real. Portanto, a linguagem, enquanto forma exclusivamente humana de percepção, representação e organização do real, guarda em si as conflitualidades geradoras das hierarquias constituídas historicamente nos espaços. Hierarquias geracionais, de casta, de gênero, de raça, variáveis espacial e temporalmente.

A complexidade da realidade social expressada na linguagem não poderia estar ausente do processo de construção identitária. A identidade social, construída na relação do indivíduo com uma realidade social estruturada sobre uma miríade de hierarquizações e conflitos sociais, é um processo multifacetado transcorrido nos diversos espaços em que nos relacionamos. Identidade social, espacial, política e cultural; identidade de raça, de classe, de gênero, de geração, inscritas na nossa caracterização estética, na nossa forma de falar, nos nossos gostos, no conteúdo de nossos discursos. Todas expressadas, com maior ou menor peso, nas nossas auto-narrativas e nas narrativas que contamos sobre o mundo que vivemos.

Quando observamos que nossas narrativas ocorrem a partir de um universo linguístico e imagético imerso num mundo histórico perene de relações de poder, descobrimos novos significados de nossa existência. Percebemos lugares antes despercebidos, e ao assumí-los, ocupamos um lugar político. A potência destas descobertas produz novas identificações – seja em relação a negritude, a condição feminina, a sexualidade, ao lugar social – que se relacionam e nos vinculam a outras existências com quem compartilhamos experiências de mundo semelhantes.

A multiplicidade destes novos lugares assumidos nos instrumentaliza para uma leitura e atuação mais ampla, autônoma, empoderada e crítica na realidade. Principalmente, perceber os caracteres históricos, relacionais e compartilhados de nossa existência, e quanto nesses lugares comuns somos políticos, mesmo sem nos darmos conta. Na diferença em que nos identificamos como únicos e comuns, nos descobrimos imersos numa realidade em que existem oprimidos e opressores.
O conhecimento histórico possui uma potencialidade imensa no processo de constituição identitária. Ao conhecermos os processos sociais, econômicos, políticos e culturais que nos precedem e situam, produzimos identificações que localizam nossas narrativas em outras narrativas mais amplas. Nos descobrimos secularmente no tempo, lugar da mudança.

Dinâmica – identidade

1)     Formar uma roda junto com a turma.

2)     Distribuir uma folha de papel A4 para cada 4 estudantes. Pedir para dividam o papel em 4 partes e dividam entre si.

3)   Sem deixar que os amigos vejam e sem identificação, pedir para cada estudante escrever em seu pedaço de papel cinco características, expressões, qualidades em que acham que são identificados pelos com que convivem.

4)   Recolher os papéis, misturá-los e redistribuí-los aleatoriamente. Pedir para os estudantes olharem se não pegaram seu próprio papel.

5)    Cada estudante vai dizer para turma o que está escrito em seu papel. A turma vai tentar identificar quem se trata.

6)   Após o fim da atividade, perguntar aos estudantes sobre suas impressões acerca das identificações produzidas e debater coletivamente as conclusões a que podemos chegar.

7)      Debates com a turma sobre o significado da identidade, a historicidade de sua constituição e a importância do conhecimento histórico na auto-reflexão sobre si mesmo na relação com mundo.

8)   Pedir aos estudantes produzirem, por escrito, uma auto-narrativa, refletindo as questões discutidas anteriormente.