sábado, 28 de março de 2009

NOIR (PARTE 1)

A música dava uma boa atmosfera ao lugar. Na junkebox, Jamelão cantava Lupcínio Rodrigues,tristes letras de amores perdidos. No antro chamado Vila Mimosa, aquele era o único lugar realmente decente e agradável. Tinha sim cheiro de perfume barato, mas infinitamente mais suportável perto do odor sufocante de latrina que permeava os becos do mais famoso baixo meretrício do Rio de Janeiro.

Aquele pequeno cabaret não era mais luxuoso que os outros, mas era para mim como um segundo lar. Josefina no balcão não deixava que a minha tranquilidade fosse pertubada. Totalmente descomposturado, bebia a minha quinta garrafa de Brahma. No cinzeiro, dezenas de guimbas de Hollywood vermelho confirmavam o meu desejo de morrer antes da próxima década. Eram três horas e quinze minutos. Alguns velhos senhores também refastelavam na casa o fim de mais uma semana ordinária , viajando no anestésico dado pela cachaça. Era o único menor de 30 no estabelecimento, e me sentia de certa forma honrado por aquelas companhias e pelo status conseguido no recinto.

Madeleine, a puta mais nova do lugar, aprochegou-se:

- Oi gostoso?

Respondi com um aceno de cabeça mal humorado, sem dirigir-lhe o olhar:

- E aí, meu bem, pronto para um sexo gostoso?

Josefina percebeu que a importuna me desgostava:

- Madeleine, venha cá! Leve a bebida do Fogaça.

Claro que gostava de mulheres, e admirava intensamente aquelas que me cercavam naquele momento. As manchas em suas peles denunciavam que aquela vida não era nada fácil, ao contrário do que enunciava um dos inúmeros sinônimos para a profissão mais antiga do mundo. Submetiam-se aos mais ignóbeis e nojentos meliantes da face da Terra, e não havia escolha, aquele era o ganha-pão das moças. Exatamente esse respeito que me impedia de manter qualquer contato sexual com elas. Gostava de beber, ouvir as músicas do tempo de meu avô, sentir aquela tristeza degradante que me aquietava o espírito após o ritmo alucinante deuma semana de trabalho, e depois deixar sempre um dinheiro a mais pela noite sem maiores inquietações. Com a conduta aprovada, nunca pude reclamar de muita coisa.

Josefina devia estar pelos seus cinquenta e cinco anos. Quando jovem, deve ter sido uma bela rapariga. Tinha nariz e lábios finos à européia, e olhos capazes de enfeitiçar o próprio feiticeiro. Desde que abriu sua própria casa, abandonara a vida. Passara uma infância difícil em Nova Iguaçú, alvo das garras de um pai violento e um irmão molestador. Antes dos 15, já abortara duas vezes, ambas do irmão. Seu pai a arrebentou de pancada em ambas, debaixo de "vacas" e "putas". Se tornou uma não pela sugestão, mas porque não era sequer alfabetizada e aquele foi o único modo que achou de sobreviver. Os homens que aguentou durante toda a vida eram o paraíso perto do que acumulara de seu pai e irmão. Porém, mesmo debaixo de tamanha amargura, sobrara-lhe o gosto pelo vasto repertório musical dos anos 40 e 50, que ouvia da vitrola do seu pai sempre após apanhar. Tenho a impressão de que aqueles cantos de lamúria deram, de alguma forma, vazão a toda sua dor e sofrimento, contando estórias de homens que sofriam por mulheres. O que Freud diria de uma mulher que, mesmo tão oprimida pelo oposto sexo, encontraria consolo em vozes tão viris como as de Nelson Gonçalves e Orlando Silva?! Foda-se!

Próximo às seis, meia caixa e dois maços depois, saí enxergando mais do que devia, meio cambaleante, mas ainda pleno para caminhar até minha casa. Durante o caminho, dois vômitos voluntários, aprendizado de anos nessa vida. Às custas, cheguei ao meu "apartamento" na Barão de Iguatemi. Acordaria na tarde seguinte com a cama suja do estorno etílico e uma baita dor de cabeça. Há algum tempo atrás, ficaria moralmente abalado, pensaria em sair dessa, ficar saudável e levar uma vida digna. Com o tempo, acabei percebendo que o que chamam "dignidade" é somente mais uma forma de controle social, e achei nesse pensamento a verdade necessária para legitimar minha decadência . Infelizmente, não causava ameaça alguma ao sistema. Pelo menos era o que pensava.

domingo, 15 de março de 2009

Esboço

(Numa sala iluminada pelo sol da manhã, emerge da escuridão um jovem cabisbaixo, de olhar tristonho e com os braços recolhidos junto ao corpo. Sem encarar diretamente a platéia, o rapaz começa a falar.)

De vez em quando, alguns pensamentos me invadem, me corroendo por dentro. São sentidos fisicamente,como se algo estivesse devorando-me o peito. Sinto vontade de extirpar essa chaga que me impede o bem-estar. O sol brilha lá fora, e seus raios adentram a janela. Repugno a vida imersa na claridade invasora, quero ter amigos, estar e gostar de praia, ter o que fazer, algo com o que ocupar a cabeça. O máximo que consigo é acender um cigarro. (Tira do bolso um maço e acende um cigarro) Minha dor e a minha juventude se esvaem a cada tragada, entorpecendo meu cérebro, roubando-me o fôlego. O ponteiro menor do relógio encontra-se quase estabelecido no onze.As horas não passam, mas mesmo assim o tempo é cruelmente rápido. Deus! Vinte e cinco anos. A vitalidade se esgota entre baforadas e lamentações, e nada realizei ainda! Faltam-me palavras para articular a vida. Tantos pensamentos que não encontram expressão na língua nativa. Deveria ter nascido em outro país. Quanta estupidez!! Será que é muito cedo para recomeçar tudo de novo? Tudo vale a pena quando a alma não é pequena, dizia o poeta. Será que a minha alma, cheia de medos e recalques, presa nos horizontes sociais de sucesso e fracasso, é pequena? O que vale a pena?
(Uma claridade mais intensa impele o rapaz novamente para a escuridão, dando as costas para a platéia e saindo de cena.)