¨Tem um homem morto lá embaixo.¨
Vejo defuntos todo o dia na tv. Sou fã de filmes de ação, onde a morte, em suas mil modalidades, é o atrativo principal. Pela manhã, o tablóide popular trás sempre alguns falecimentos- chefes do tráfico, policiais, crianças, idosos, pessoas famosas- cuja ¨causa mortis¨ são de todas as naturezas possíveis -assassinatos encomendados, roubo seguido de morte, bala perdida, negligência médica, descaso público. Nos noticiários televisivos, tais fatos são repetidos, decerto numa exposição mais dramática, que a letra escrita da imprensa não é capaz de expor.
A notícia recebida na descida da rua gelou-me a espinha. A possibilidade de defrontar-me com um cadáver exposto nas vias públicas não é corriqueira como apontam as estatísticas da Secretaria de Segurança Pública. Moro perto do morro, mas esse é um fato para grande parte dos moradores do Rio de Janeiro. É asfalto ainda, o Estado está presente não somente pela presença de sua força policial. Escuto tiroteios com uma rotina maior do que gostaria, fruto da ação dos protetores da vida dos cidadãos pagadores de impostos, em suas incursões nas ¨comunidades¨, um conceito moderno para expressar o espaço destinado aqueles excluídos das benesses do poder público e do capital.
Fim da ladeira, dobro à esquerda. Gente amontoada um pouco adiante, cercando uma viatura policial. Passo cautelosamente, o coração um pouco acelerado, os olhos vidrados na cena, e as pernas assustadas, querendo seguir o caminho pré-estabelecido. Sou acometido pela minha natureza curiosa de espécie humana. O fim público de uma vida é evento concorrido, e a necessidade de saber sobre o fato torna-se um imperativo.
Há um corpo estirado, envolto num saco preto. Vê-se somente o tênis Adidas soçaite e a bainha da calça jeans escura. As versões da morte circulam, sem necessidade de interrogações.
¨Foi morte encomendada, o rapaz era guardador de carros aqui em frente.¨
¨Vieram perseguindo a pé desde a Saens Pena, assaltaram um banco por lá.¨
¨O bandido matou, o homem reagiu.¨
A verdade, naquele instante, não importava. A circulação de informações sobre aquela estória não valia pelo grau de reflexão embutido, mas era gerada pela mera contigência de dizer algo, de comentar o esplendoroso acontecimento. Não fiquei até chegarem os carros de reportagem. Fui ao mercado e voltei, pelo mesmo caminho, e o corpo continuava lá, com o círculo de pessoas a admirarem e comentar.
Mais tarde em casa, soube que deu no telejornal. Houve tiroteio e pânico na Hadock Lobo. Dois homens, que praticavam o assalto conhecido como ¨saidinha de banco¨, foram flagrados por dois policiais que passavam . Tentaram fugir em sua moto, mas foram perseguidos. Um deles escapou, fazendo uma manobra milagrosa, na qual passara do veículo de duas rodas para um taxi que esperava o sinal abrir. O outro, mais jovem, acabou ali, dentro do saco preto, furado pelas balas da lei.
Seu nome era Walter Reis, 16 anos.