Nada acontecia de muito novo naquele interior esquecido por Deus. O ritmo lento, com o sino da Igreja a marcar o tempo, o andar cansado de lá para cá, o burro de osso e carne suportando um peso maior de que o seu, as crianças com a barriga inchada a correr atrás de qualquer bicho. Meio que se esperava o dia de morrer. Nada mudava. Até um dia qualquer, num desses tantos verões...
Estava no meio da tarde, quando chegou um homem na cidade, franzino e calvo, com um andar ereto, carregando uma pequena maleta negra. Atravessando a pequena rua de terra, dirigiu-se ao centro da praça, subiu no velho coreto e retirou um grosso tomo de papéis velhos. Montou uma bancada para apoiá-los, aproximou-se da muretinha de madeira, ajeitou o restinho de cabelo que circundava a cabeça e começou a falar. Não chamou ninguém, mas as pessoas começaram a se juntar para ver o que acontecia.
Parecia que não havia necessidade de dizer algo. Aquele texto tinha o objetivo único de impressionar. As palavras, selecionadas pelo seu impacto fônico, não eram para ser compreendidas, somente sentidas, aumentar a grandeza de quem falava. Os adjetivos, utilizados para ornamentar a retórica, construindo a imagem grandiloqüente dos substantivos a que emprestava qualidade. E quantos circunflexos e proparoxítonas não estavam contidas em seu discurso!? Sim, era belo, na voz grave daquele homem, mas em texto, as frases e orações diziam pouca coisa, ou nada. Era elogiável o seu talento para declamar, o controle da entonação, que não deixava ninguém dormir; seus gestos enfáticos, tudo era uma encenação teatral de altíssima dramaticidade.
O povo estarrecido olhava como se fosse a sétima maravilha do mundo. Que sabedoria naquele homem! Aplaudiam e gritavam a cada entusiasmo do orador. De terno e gravata, suava em bicas por causa do grande calor que fazia na cidade. Pessoa importante, merecia todo o respeito. A autoridade emanava daquela imagem, que enunciava sons incompreensíveis, mas impactantes; e externava importância em suas vestes.
Começou a chover. Nem o homem nem o povo dispersavam. A lama emergia das ruas de terra em volta da praça. As mulheres levantavam as mãos para o céu, erguiam os seus filhos sobre as cabeças, como se quisessem alcançar uma graça. A alegria nos olhos daquela gente passava uma certa tristeza. Uma pequena cidade no sertão, pouca água, pouca comida, muita miséria e judiação. O que caía do céu naquele instante era um milagre. Algum homem mais ilustrado que passasse por ali pensaria que era um político, ou um pastor, mas ao ouvir a mensagem, não distinguiria nem um nem outro. A multidão cada vez crescia mais, e mais...Chegavam crianças, velhos, mães, cachaceiros, padres, mendigos, trabalhadores. Era a hora do crepúsculo, os sinos não tocaram e o espetáculo continuava.
A praça ficou pequena. A chuva apertava. O vento levara o telhado do coreto. O suor e a água da chuva misturavam-se na tez do homem. Suas roupas molhadas acabaram com o alinhamento em que chegara. Sua voz não tinha limites. Continuava a falar e o povo a assistir. Não havia polícia nem qualquer autoridade. Ninguém sabia quem era aquele homem, mas ele falava bonito. Muitos começaram a chorar, sem saber direito o porquê. Foi gente chegando sem parar. Sem microfone, a voz do orador aumentava a distâncias cada vez maiores, atingindo sempre a um diâmetro mais extenso. Como era possível? Não havia idéia, mas também quem parou para pensar nisso? Em pouco tempo, a multidão ultrapassava os limites da cidade, penetrando por suas poucas ruelas, em todas as direções possíveis.
O tempo passava, a chuva a cair, cair,...o homem a falar, falar.....e ninguém saía do seu lugar, mas chegavam. Nunca chovera tanto por aquelas paragens, nem tanta gente havia se visto. Mas ninguém ligava. Parecia uma espécie de encantamento que o homem careca, aliado à chuva, fazia no povo. Os papéis, que serviam de referência ao orador, há horas virara uma pasta de celulose. Já não fazia diferença. Aquele homenzinho estava encarnado, falava já tudo de cabeça. Cada vez que chegava mais gente, mais a chuva apertava, e mais alta e grave a voz ficava.
A lama engrossava e avançava sobre o tornozelo das pessoas. Repentinamente, começou a trovejar. Alguns minutos depois, raios começaram a cair sobre as casas, a incendiá-las. Em vez de apagar, a água que caia do céu aumentava as labaredas. Mesmo assim nada era percebido, e mais gente, quase que brotando da terra, chegava. Choros, gritos, urros, sussurros, gemidos de prazer. Ouvia se de tudo da massa, mas como um mero pano de fundo ao som que vinha do centro.
Já avançava pelo meio da madrugada. Toda a gente pobre e miserável do mundo parecia estar reunida naquele momento em volta do velho coreto. Toda a sede, a fome, o frio e a dor encontravam-se ali, e haviam sido esquecidos. De alguma maneira, como algo sem explicação, havia felicidade naquelas pessoas. Um trovão longo e estrondoso ressoou, superando a gravidade do orador. Mas o barulho vinha da terra, e ela começou a tremer. Partindo do coreto, imensos buracos começaram a abrir-se das rachaduras no chão, a engolir todos. Os casebres em fogo imergiam dentro de imensas chamas subterrâneas. Mas ninguém se desesperava, ninguém corria. Todos se resignavam.
Pela manhã, somente o que sobrara de toda a cidade foi o coreto. Sobre ele, a silhueta de um homem, petrificada. Nunca ninguém entendeu o que acontecera. Durante anos e anos, cientistas tentaram arrumar uma explicação. Mas não havia. Os devorados pela terra não deixaram memória, identidade ou lembranças. Ninguém dera pela falta deles.Por décadas e décadas reinou a felicidade. O sertão virara mar e toda a miséria daquela região deixou de existir. Oraram a Deus.
6 comentários:
tá tudo perfeito aqui!
a imagem de fundo então, linda, linda!
"Vidas secas" com "Cem anos de solidão"? Adorei o texto, conseguisse deixá-lo impregnado de duas obras que muito me marcaram. Não sei se foi essa tua intenção, mas a conseguisse. Harold Bloom diz que há uma comunicação espiritual entre os amantes da literatura, mesmo sem nos lermos, nos conectamos. O texto valeu minha noite. Continue assim!
Fiquei sem palavras com esse texto. Me passou tantas sensações diferentes que não sei se conseguiria passá-las pras palavras agora. Uma certa angústia até.
Parabéns, você escreve bem pra caramba! =)
Então você que é o Marccello!
Prazer, do contra! =)
Beeeeeeeeeeeeeijos
estarrecida estou eu. impressionada com tuas palavras.
lindas e intensas. de verdade.
éé.
lembrou mesmo cem anos de solidão.
e por falar nisso, assim que passar esse período de muitas coisas, lerei cem anos de solidão novamente. *.*
beijo, marcelo!
Eu li o primeiro e gostei MUITO. Agora li esse e... Você é genial! Sabe mexer com sensações, impressões, imagens. Um artista plástico da literatura.
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