sábado, 6 de dezembro de 2008

O Banho

Faltara água no prédio, estavam impermeabilizando a caixa d`água. Há dez dias. O dia de trabalho na Bolsa fora estafante, como sempre, e só existia um balde dentro de casa. Meia-noite e meia, e o acesso à cisterna estava fechado.

O homem passara a semana no escritório de sua corretora, que possuía um confortável vestiário. Maldita idéia de vir para casa direto, pensou. Sentia-se sujo, e ficar sem tomar banho não era uma opção. Aquele balde teria que dar. Fazia um pouco de frio, então colocou para esquentar uma parte da água. Ajeitou sua roupa de dormir em cima da cama e pegou uma toalha limpa. Nesse meio tempo, a água fervera. Colocou o balde dentro do box e despejou a água quente por cima da fria, quebrando um pouco a temperatura. Arranjou um recipiente – uma pequena e antiga panela de alumínio – para fazer o transporte da água para o seu corpo.

Tirou a roupa e entrou no box. Ao primeiro instante - um grande e largo homem pelado com o recipiente na mão - veio uma lembrança a surpreender-lhe – um nome: o baldinho. Era como se chamava a panelinha com que tomava banho quando menino – uns oito ou nove anos – época em que morava no três-sete-meia da Hadock Lobo. Não era do tipo que guardava reminiscências bucólicas. Fora uma criança de condomínio, com chuveiro e água encanada. Porém, durante anos, até se mudarem para São Cristóvão, aquele apartamento permanecera sem chuveiro elétrico ou aquecedor. Nos dias de frio, mamãe esquentava-lhe a água e tomava banho quebrado e de baldinho – tivera muita alergia, por isso o pediatra não recomendava banhos muito quentes.

A atípica recordação divertiu-lhe, tirando o mau-humor da circunstância. De repente, o sorriso sumiu do rosto do homem gordo. Por onde começar? Um corpo imenso e pouca água. O que fazer? Após uns instantes coçando a cabeça, decidiu começar por ela mesmo, seguindo a lógica de que a água acabaria por descer pelo tronco, a molhar-lhe todo o resto. Curvou-se com o baldinho na mão esquerda, encheu-lhe de água e fez o que pensara, utilizando o outro braço para espalhar a água que descia pelo seu tronco. Repetiu o movimento umas três ou quatro vezes, deixando-o molhado o suficiente para o ensaboamento.

Abandonara o baldinho flutuando no balde e começou a passar o sabonete. Era diferente de um banho de chuveiro. Não havia aquele jato forte, que descia frenético, quente e anestesiante, a desviar-lhe o pensamento em outras direções. Só se ouvia a fricção do sabonete com os pêlos do corpo. Era interessante, parecia a primeira vez que prestava atenção no ato de ensaboar-se. Cansado demais para pensar em qualquer coisa, concentrou-se naquela descoberta. Cobria de branco os peitos caídos, a volumosa barriga, os braços flácidos e o dorso dobrado de gordura . Sentia-se tocar, expressão que só ouvira nos filmes de adulto, em boca de mulheres esculturais. Era estranho e sensual, mas calmo. Não havia ereção, mas era sexo. Fechou os olhos e pôs-se a sorrir, um sorriso gostoso, leve e descomprometido, quase a reação deslumbrada de uma criança com coisa nova e fascinante. Ficara minutos e minutos nesse (re) descobrir-se.

Um frio lhe acometera, o que rompeu a sua imersão sexual. O balde cheio um pouco aquém da metade. Seria necessário prudência para não terminar o banho com espuma espalhada. À medida que enchia o baldinho, dispunha-lhe aos poucos, por cada parte ensaboada, com o toque da mão a acompanhar o enxágüe. O som da água caindo sobre a pele gelou-lhe a espinha. Um sentimento primitivo e poderoso tomou o homem. Dominava ritmo, volume e gravidade da água derramada. A percepção do banhar-se, a delicadeza em dedicar atenção às curvas e dobradiças escondidas do seu corpo gorduroso; tratava-se de um trabalho paciente e ao mesmo tempo (e novamente) de descoberta. Era sensual, extravagante. Sentiu uma liberdade constrangedora em devassar-se. Ao acabar a água do balde, uma tristeza tomou-lhe. Saiu do box. Na frente do espelho a secar-se, via o seu corpo, antes repulsivo, com olhos bem mais benevolentes.

Algo diferente aconteceu. Chorou.

5 comentários:

Anna Duzzi disse...

me identifico muito com esse tipo de texto. gosto de arriscar-me neles, apesar de 99% das vezes ter vergonha de postá-los.

Gostei (:

Ivson Olivera disse...

Muito bom. Gosto de textos descritivos. Mais que descritivos, sensitivos, como é o caso do seu.

Unknown disse...

Gosto do seu modo descritivo de escrever, dos detalhes.

Muito bom o texto.

Nathália de Alencar disse...

Gostei de seus textos ;)
Encontrei neles um toque "machadiano". Rsrs... Não sei, ao certo, o que me fez pensar assim - talvez a descrição dos detalhes, como já disseram nos outros comentários. Mas, que tem uma cara de Machado de Assis, isso tem! Rsrs...

Márcio Viana disse...

Me identifiquei bastante com o estilo, também gosto de escrever assim. Bacana, vou visitar sempre.