Hoje é feriado de São Sebastião aqui no Rio de Janeiro. Esse dia me trás a cabeça algumas estórias de minha primeira infância, contadas e recontadas em casa durante toda a minha vida.
Esta poderia ser uma estória de negligência médica terminada em mais uma morte inocente. Se entendi bem, assim que nasci, os médicos esqueceram de retirar-me o líquido amniótico, ou placenta, que geralmente fica dentro dos bebês após o parto. Como todos aqueles que curtem o primeiro filho homem, meu pai olhava-me no berçário, e então percebeu que havia algo de errado. A minha cor estava mudando, a pele ficando roxa e a respiração fraca. Desesperado, gritou pelas enfermeiras. Mais alguns minutos, teria morrido sufocado.
Alojando-se nos pulmões, o líquido fez-me desenvolver um quadro de pneumonia. Com a saúde precária de um recém-nascido, havia risco de morte. Por essa ocasião, meu avô fez uma promessa a São Sebastião, prometendo, em troca da preservação do seu neto, levar-me todo o ano a Igreja dos Capuchinhos, no feriado do santo, vestido inteiramente de vermelho.
Não sei se por causa da promessa, mas hoje estou aqui para contar esta estória. Meu avô morreu pouco mais de um ano após o meu nascimento. Não teve a oportunidade de viver para cumprir a sua promessa, mas lembro-me vagamente, em reminiscências, de ser levado a Igreja em um certo dia do ano, de muito calor, vestido com um blusão vermelho de botões. Não me recordo direito quem me levava, mas possivelmente era a minha tia-avó, que cresci chamando de madrinha (apesar de não ser, e talvez aí encontre-se a razão de assim chamá-la) e esse ritual deve ter sido cumprido até os meus cinco ou seis anos de idade.
Outra das estórias de primeira infância diz respeito ao leite que me nutriu. Por motivos que até hoje desconheço, o leite da minha mãe secou. Durante meses, fui indiretamente amamentado pelo leite de outras mulheres, destinado a outros filhos e filhas, conseguido pelo esforço de um tal Seu Flávio. Ouvi sempre, com um doce tom de gratidão, que ele botava o morro do Turano abaixo atrás de leite para mim. Esse generoso homem era nosso vizinho quando morávamos no 376 da Hadock Lobo, mas cujo rosto não me recordo, pois cedo se separou da mulher e foi embora de casa.
Dessas mulheres, somente duas entraram na minha vida de alguma forma. Uma, porteira de um prédio na Hadock Lobo, negra, pobre, moradora do morro do Turano, fumante. Sempre passo por ela, sabendo quem é, mas indiferente, como se fosse uma pessoa qualquer. A outra, de nome Sueli, também muito pobre, também moradora do morro, também negra, também fumante, tem uma penca de filhos e viveu metida com bandidos. Trabalha como faxineira nas casas da classe média tijucana, e visita eventualmente a minha residência. Sua figura não me agrada, é arrogante e tem um jeito grosseiro de se expressar, além de estar sempre interessada em dinheiro ou algo a ser dado, o que gasta com cervejas em alguma birosca de favela. A essas mulheres, devo o meu primeiro alimento. Qualquer outra possível relação é uma mera questão de fé.
Nasci no dia treze de maio, num domingo de dias das mães, de Nossa Senhora de Fátima, da Abolição da Escravidão, e principalmente, dos preto-velho. Todo o ano, vovó põe um copo do primeiro café desse dia na janela, que lá fica até o primeiro café do dia seguinte ser feito. É uma crendice que me causa uma grande simpatia, e se não produz efeito algum, mal também não pode fazer. É o nosso cristianismo de superfície, como lamentaria Sérgio Buarque de Holanda e celebraria Gilberto Freyre, que se nos impediu de desenvolver uma fé interior, uma aescese na própria vida, nos guardou esse paganismo bonito, de relações pessoais e quase afetiva com os santos. Mas essa é outra discussão.
Na minha primeira infância, meu pai foi herói, meu avô mártir, bebi do leite de negras e fui salvo por milagre. Uma típica mitologia brasileira.
Esta poderia ser uma estória de negligência médica terminada em mais uma morte inocente. Se entendi bem, assim que nasci, os médicos esqueceram de retirar-me o líquido amniótico, ou placenta, que geralmente fica dentro dos bebês após o parto. Como todos aqueles que curtem o primeiro filho homem, meu pai olhava-me no berçário, e então percebeu que havia algo de errado. A minha cor estava mudando, a pele ficando roxa e a respiração fraca. Desesperado, gritou pelas enfermeiras. Mais alguns minutos, teria morrido sufocado.
Alojando-se nos pulmões, o líquido fez-me desenvolver um quadro de pneumonia. Com a saúde precária de um recém-nascido, havia risco de morte. Por essa ocasião, meu avô fez uma promessa a São Sebastião, prometendo, em troca da preservação do seu neto, levar-me todo o ano a Igreja dos Capuchinhos, no feriado do santo, vestido inteiramente de vermelho.
Não sei se por causa da promessa, mas hoje estou aqui para contar esta estória. Meu avô morreu pouco mais de um ano após o meu nascimento. Não teve a oportunidade de viver para cumprir a sua promessa, mas lembro-me vagamente, em reminiscências, de ser levado a Igreja em um certo dia do ano, de muito calor, vestido com um blusão vermelho de botões. Não me recordo direito quem me levava, mas possivelmente era a minha tia-avó, que cresci chamando de madrinha (apesar de não ser, e talvez aí encontre-se a razão de assim chamá-la) e esse ritual deve ter sido cumprido até os meus cinco ou seis anos de idade.
Outra das estórias de primeira infância diz respeito ao leite que me nutriu. Por motivos que até hoje desconheço, o leite da minha mãe secou. Durante meses, fui indiretamente amamentado pelo leite de outras mulheres, destinado a outros filhos e filhas, conseguido pelo esforço de um tal Seu Flávio. Ouvi sempre, com um doce tom de gratidão, que ele botava o morro do Turano abaixo atrás de leite para mim. Esse generoso homem era nosso vizinho quando morávamos no 376 da Hadock Lobo, mas cujo rosto não me recordo, pois cedo se separou da mulher e foi embora de casa.
Dessas mulheres, somente duas entraram na minha vida de alguma forma. Uma, porteira de um prédio na Hadock Lobo, negra, pobre, moradora do morro do Turano, fumante. Sempre passo por ela, sabendo quem é, mas indiferente, como se fosse uma pessoa qualquer. A outra, de nome Sueli, também muito pobre, também moradora do morro, também negra, também fumante, tem uma penca de filhos e viveu metida com bandidos. Trabalha como faxineira nas casas da classe média tijucana, e visita eventualmente a minha residência. Sua figura não me agrada, é arrogante e tem um jeito grosseiro de se expressar, além de estar sempre interessada em dinheiro ou algo a ser dado, o que gasta com cervejas em alguma birosca de favela. A essas mulheres, devo o meu primeiro alimento. Qualquer outra possível relação é uma mera questão de fé.
Nasci no dia treze de maio, num domingo de dias das mães, de Nossa Senhora de Fátima, da Abolição da Escravidão, e principalmente, dos preto-velho. Todo o ano, vovó põe um copo do primeiro café desse dia na janela, que lá fica até o primeiro café do dia seguinte ser feito. É uma crendice que me causa uma grande simpatia, e se não produz efeito algum, mal também não pode fazer. É o nosso cristianismo de superfície, como lamentaria Sérgio Buarque de Holanda e celebraria Gilberto Freyre, que se nos impediu de desenvolver uma fé interior, uma aescese na própria vida, nos guardou esse paganismo bonito, de relações pessoais e quase afetiva com os santos. Mas essa é outra discussão.
Na minha primeira infância, meu pai foi herói, meu avô mártir, bebi do leite de negras e fui salvo por milagre. Uma típica mitologia brasileira.
3 comentários:
O Rio fez parte da minha primeira infância. Vivi nos morros de Santa Tereza . As vezes visito essa cidade, mas confesso que vontade eu não tenho de ficar.
é mais uma infelicidade, uma pessoa perfeita que está longe. assim meu coração não aguenta!
Sabe que tenho poucas lembranças da minha infância. Muito me é contado...e carrego o resultado de muitos feitos dessa época. Era um pouco azarada. ^^'
Que legal cara!
Histórias interessantes as da sua infÂncia.
Abraço!
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