segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Estórias para adultos

(Os personagens dessa estória são meramente ficcionais, e qualquer possível semelhança trata-se de uma mera e infeliz coincidência)

Durante minha infância, o mundo se movia de forma distinta. Parecia que todos eram aquilo mesmo que aparentavam e que não havia nada a mais. Quando aparecia algo que perturbava esse equilíbrio, como uma morte, era um choque, algo que punha em xeque o que estava em harmonia. Mas logo o jogo de videogame, um gostoso sorvete ou o episodio inédito dos Cavaleiros do Zodíaco trazia de novo as coisas para o seu devido lugar. E tudo era novamente uma brincadeira, para não ser compreendido e levado a sério.

Assim, muitas coisas ficaram mal-resolvidas em minha vida. Postas no campo do proibido, do intocado, do que era o mal. Não posso negar que também sempre me faltou coragem para querer realmente superar essas barreiras. Fui criado tendo na escola, nos esportes que praticava nos clubes perto de casa, na pracinha onde brincava nas manhãs de domingo, os únicos lugares permitidos para fazer amigos, e mesmo assim sobre o olhar atento de ¨responsáveis¨. Ficava a maioria do tempo entre as quatro paredes do meu apartamento, driblando com a bola de futebol os móveis de casa, jogando o meu Dynavision, assistindo a filmes de Sessão da Tarde e seriados de tv. É incrível o que essas tecnologias e mídias podem fazer com as crianças.

Tudo o que fosse possível para evitar o constrangimento, o conflito, o mal-estar, a dor. Essa foi a fórmula que, inconscientemente, aprendi em casa e levei para a vida. Cresci assim. Sempre fui um moleque inteligente, que aprendia rápido as coisas na escola e passava de ano sem recuperação, mas que no resto, e verdadeiramente importante, era um desastre. Tinha medo, de me declarar para uma menina, de enfrentar os meus pais, de fazer as coisas erradas (e provar se elas eram mesmo erradas). Nunca matei aula para fumar, tomar vinho ou ir aos jogos do Vasco.

De todas as minhas covardias, as maiores foram àquelas relacionadas à expressão de sentimentos. Quando era criança, beijava os meus pais, meus avós, meus padrinhos, mas sempre foram beijos de formalidade. O afeto sempre me foi alheio e não aprendi a expressá-lo direito. Quantas meninas não deixei passar por vergonha de mostrar-lhes o que sentia?! E sobressaí hoje essa aparência da pessoa fria, meio sem jeito, meio mongol, sem iniciativa, exatamente porque nunca me arrisquei, nunca me lancei sem medo em nada. Ainda tenho vergonha de beijar o meu pai, e não consigo chama-lo para uma cerveja pois existe algo dentro de mim que me embaraça em assumir o hábito de beber. Eu tenho vinte e quatro anos.

Porém, a infância não me guarda somente coisas tristes, ou explicações originárias para as minhas atuais frustrações. Se existem coisas que, mesmo depois que crescemos, permanecem num lugar intocado, outras acabam se desmistificando. Sabe, quando fui ficando mais velho, a minha família começou a ficar chata. Não havia nada de interessante, somente estórias de casais perfeitos, de filhos bem criados. Aos poucos, porém, os "podres" começaram a aparecer, e pude perceber que a minha família era bem mais interessante do que eu imaginava.

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A nostalgia é o passado que se faz presente e determina nosso futuro. (Alfredo Bryce Echenique)

Morei durante dez anos da minha vida no apartamento oito-zero-quatro do número três-sete-meia da rua Hadock Lobo. No quinto andar, morava a irmã da minha avó, a tia Arlete, a quem chamava de Dinha (apesar de não ser a minha madrinha de fato). Junto com ela, morava o meu padrinho (de verdade), a quem todos sempre chamavam de Quinha (e só mais tarde me dei conta de que não era esse o seu nome), e o esposo dela, o tio Hélio. Apesar de serem todos velhos, o apartamento da Tia Arlete foi o lugar no qual mais me diverti durante a minha infância. Quase todo o dia, à noite, descia lá com a minha avó, e ficávamos todos na sala, enquanto as novelas da noite passavam na TV. Sentado na cadeira de balanço, conversava em altos brados com o meu padrinho, ouvindo atenciosamente suas estórias de bravura em Sumidouro- cidadezinha próxima à Nova Friburgo, onde crescera- e de sua breve passagem pela Aeronáutica. Eram estórias de brigas - por mulheres e por orgulho - de caçar animais e passarinhos com armadilhas e espingardas de ar comprimido, de grandes pescarias no Paraíba do Sul, de pegar peixes do tamanho de canoas e enfrentar a nado as correntezas do bravo rio. Sempre prometia me levar à Sumidouro para vivermos grandes aventuras, e sempre sonhei com esse dia.

Não, ele nunca chegou. Quando tinha oito, ou nove anos, Tia Arlete morreu. Poucos meses depois, Tio Hélio e Quinha se mudaram para um apartamento no mesmo bairro, mas longe o suficiente para uma criança superprotegida ir visitar. Mais ou menos um ano depois, também mudamos, só que para São Cristovão. Durante algum tempo, Quinha ainda ia me pegar para nossas tradicionais pescarias no Aterro do Flamengo (às quais adorava, apesar de não pegar mais do que um peixe e ficar dias com a pele queimando por causa do Sol), mas essas saídas ficaram cada vez mais escassas. Os anos se passaram, e também aquela idolatria de criança. Por causa do problema de alcoolismo de Tio Hélio, o filho foi obrigado a mandá-lo para um asilo. Sem ter onde ficar, Quinha voltou para a sua terra natal. Depois de um certo tempo, ele passara a apenas mais um parente com quem às vezes falava no telefone.

Cinco anos depois, saímos de São Cristóvão e voltamos a morar na Tijuca. Num dia desses, sem nada de especial, veio a notícia, com a mesma banalidade do dia. O filho do Tio Hélio ligou para nossa casa, e informara, no meio de outras notícias, que o meu padrinho havia morrido, não naquele dia, mas há meses atrás. Minha avó me deu a notícia, a qual reagi com indiferença, pois aquela morte era de alguém que há muito havia se desligado da minha vida, que não era mais importante. Mas hoje, bons anos depois, nessa exata madrugada do dia vinte e cinco de janeiro de dois mil e nove, posso afirmar uma ponta de revolta, com a aparência de hipocrisia, mas profundamente nostálgica. Aquele homem fora o herói da minha infância, o avô que não tive, quem me forneceu a matéria-prima para imaginar algo além da minha realidade alienada, e ele morreu assim, num dia qualquer, num leito anônimo de hospital público, sem lágrimas, sem ninguém para lhe dar o aconchego do último momento. E a mim foi privado sentir essa morte, tanto pelas circunstâncias físicas que me afastavam daquele lugar e daquele homem; quanto pelas circunstâncias fornecidas pela vida, que afastavam todo o meu afeto. Alguns caminhos tomados pela vida são realmente injustos e tristes.

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Se o apartamento da tia Arlete fora um lugar de muitas alegrias durante a minha infância, ele também escondia segredos inconfessáveis para uma criança. Essas estórias só me foram contadas muito tempo depois, e dosadamente, à medida que ouvia algo escapar furtivamente e perguntava sobre o assunto. Já na idade certa de saber as “coisas sujas”, o esmero familiar em omitir certas informações havia desaparecido.

Nunca fui de indagar as razões de Tia Arlete, Quinha e Tio Hélio residirem juntos. Afinal, Quinha era meu padrinho, logo parente, então era como se o lugar dele não precisasse de justificativas. Tudo era tratado com tanta naturalidade, que realmente parecia que não havia nada de errado, ou imoral, naquela relação. Mas a vida é bem mais complicada e interessante do que um mero quadro de relações de parentesco.

Vou tentar reconstituir os fatos através dos detalhes esparsos guardados pela minha memória, recolhidos dos diversos relatos de minha avó, meu pai e minha mãe. Não sei ao certo datar quando essa estória começa, mas creio que seja por volta de meados dos anos 1950. O irmão da minha avó, o falecido tio Ricardo, conhecera aqui no Rio de Janeiro uma mulher chamada Zezé, apaixonou-se e casou-se com ela. Zezé tinha também uma estória enrolada, era dada a trambiques e gostava muito de homens, mas o que nos importa agora é saber que a sua família era de Sumidouro. Assim, para os parentes do Tio Ricardo, a cidadezinha interiorana passou a ser um lugar para visitar, não sei se somente a passeio, a trabalho ou para férias prolongadas. Um fato curioso dessa ligação com Sumidouro é que a maior parte das mulheres ligadas à família de minha avó começou a recrutar, entre a população muito pobre e iletrada sumidorense, pessoas para trabalhar como empregados domésticos. Posso dizer, pelo menos do que já ouvi, que era algo quase como trabalho escravo, e à época que tomei conhecimento dessas coisas, fiquei bastante revoltado.

Fechando os parênteses, Tia Arlete e a minha avó – ambas casadas – também começaram a visitar Sumidouro. Meu avô, em seu trabalho de costureiro, ganhara muito dinheiro por lá, na venda de roupas confeccionadas por ele. Sobre a Tia Arlete, não sei de que maneira isso ocorreu, também não tenho provas suficientes para provar o que aqui escrevo, mas dizem as más (ou verdadeiras) línguas, que se apaixonara por um jovem rapaz, de nome José Soares.

Vieram para o Rio de Janeiro, e o mancebo sumidorense veio junto. De acordo com estórias de infância de meu pai, posso presumir que José Soares já morava naquela época, décadas de 1960 e 1970, com a Tia Arlete e Tio Hélio. Trabalhara em fábricas e no aeroporto do Galeão, e em muito desses empregos, Tio Hélio e Quinha foram companheiros. Era engraçado, pois quando criança, ouvia muitas estórias de compadrio entre ambos, com um certo ar nostálgico, de boas pescarias e ¨causos¨. Mas outras, ouvidas posteriormente, narravam a rotina de um triângulo amoroso formal, marido, mulher e amante, vivendo sob o mesmo teto, onde o amante tinha o melhor prato de comida e outras preferências. Essa situação era flagrante na própria compleição física e no comportamento de ambos. Tio Hélio, desde que me entendo por gente, sempre foi franzino, curvado, fumava feito um condenado e bebia mais ainda. Já Quinha sempre teve um belo porte, mesmo depois de velho, era bem disposto, gostava de exercícios físicos, não tinha vícios e estava a toda hora fazendo alguma coisa. Um era encolhido e tímido. O outro, exaltado e brincalhão. O marido humilhado e o garanhão, respectivamente aparente.

Ficara sabendo somente de uma confusão em todo o tempo de três-sete-meia, no qual a minha madrinha de verdade, irmã de meu pai, brigara com a Tia Arlete, e a chamara, para todo o prédio ouvir, de “Dona Flor e seus dois maridos”. Não saberia dimensionar a repercussão desse caso, e talvez por ter sido uma criança muito tapada e presa, não percebesse os murmurinhos em volta. Mesmo dentro da minha família, extremamente conservadora, nunca ouvi um único comentário sobre a tal imoralidade do quinto andar. Pelo contrário, Quinha sempre foi um homem muito respeitado e querido em nossa casa, tanto que sempre existiu uma confiança em meus pais de deixar-me ir com ele aonde quisesse. E apesar das considerações que fiz anteriormente, sobre posturas estereotipadas, o clima na casa deles também fora sempre de muita leveza, de um grande cuidado e fraternidade entre eles.

Quando a Tia Arlete morreu, Tio Hélio e Quinha continuaram a morar juntos, e assim conviveram por uns bons oito anos, sem peso, somente as costumeiras discussões de casal. Uma relação não convencional que durou uma vida. E eu, que sempre achei que o Tio Hélio fosse morrer antes do Quinha, me enganei. Tio Hélio continua vivo, embora não muito lúcido, numa casa de repouso na rua Santa Alexandrina. Fazia visitas ocasionais, nos fins de semana, que foram diminuindo gradualmente. O único não-judeu do lugar. Uma solidão imerecida.

9 comentários:

Jaime Guimarães disse...

"muitas coisas ficaram mal-resolvidas em minha vida. Postas no campo do proibido, do intocado, do que era o mal. Não posso negar que também sempre me faltou coragem para querer realmente superar essas barreiras."

É como se eu estivesse diante de um espelho. Mais ou menos fez uma descrição sobre mim. Lembro-me dos meus 13, 14 anos e a dificuldade em dar um beijo no rosto de uma menina, imagine. O que dirá então namorar e socializar.

Mas lá pelos meus 15 e 16 anos resolvi "transgredir" algumas regras. Algumas, não, várias. Agradeço de certa forma ao Collor, pois "graças" a ele, meu pai me tirou da escola particular e me colocou numa escola pública. Ensino médio à noite. Periferia.

A transgressão foi, então, uma forma de sobrevivência. Mas mantive um lado certinho, claro. Mas a dificuldade em expressar sentimentos ainda continua, embora hoje esteja bem melhor em comparação a certos tempos.

"Dona-Flor e seus dois maridos". Essa eu descobri até cedo...rsss. Sabia quem era Dona-Flor, mas não sabia o que era lésbica. "A vizinha é lésbica,não se aproxime!". E eu confundia lésbica com lepra. Olha o que colocavam na minha cabeça!

abs!

http://grooeland.blogspot.com

Nathalie Palácio disse...

Adorei a forma como escreve, percebo uma mistura de simplicidade e complexidade tremenda, e isso me fascina. Também gosto de temas que nos fazer refretir sobre nós mesmos... e impossível não se identificar com certos relatos.
Parabéns!
P.s.:[Meu comentário a você na comunidade dos 'blogueiros fracassados' hehehe >>> Agradeço muito sua análise e opinião sobre meu texto! ^^
Achei interessante sua visão sobre certos trechos, e acho de grande valia para futuras reflexões.
Você disse que não conseguiu postar no meu blog, creio que agora já esteja tudo resolvido, caso ainda queira postar sua análise, ficarei grata, pois, assim, poderemos continuar a analisar o tema!
Obrigada mais uma vez![:)]

Deftones disse...

Esses personagens não são meramente ficcionais. Eles estão todos por aí. O padrinho contador de histórias, as senhoras que levam vida dupla, os pais receosos do que o filho ouve, diz, pensa. E o próprio protagonista também é onipresente, aquele que cresce violentando a própria curiosidade, aprendendo somente o que é certo, como se fosse um cachorro de estimação, nunca, jamais preparado para os conflitos que a vida trará.

O mundo onde vivemos, por uma mera e infeliz coincidência, não é tão diferente daquele ambiente vazio e claustrofóbico que vemos na Literatura, e que só grandes romances e contos conseguem reproduzí-lo com êxito. Você soube destacar bem um pouco desse caráter que a vida leva.

Um abraço.

~ a Juh! disse...

Tem presente pra você no meu blog. =)
Espero que goste ;)

Beeeeeeeeeijos

Anônimo disse...

Oi!!Tenho um selo no meu blog pra vc!!!^^

~ a Juh! disse...

Te indiquei pra mais um selo no meu blog. Passa lá pra ver ;)

Beeeeeeeeeeeeeeijos

F.P.Oliver disse...

Tem presentinho pra vc no meu blog!
Passa la =)

Nathalie Palácio disse...

Olá!
Nem sei se você vai se lembrar de mim, mas sou a autora do blog 'memórias inóspitas'. Você comentou no meu texto chamado 'Síndrome da Solidão'.
Já faz um bom tempo que não posto e, nem mesmo, agradeci em resposta ao seu comentário.
A faculdade está me tomando um tempo absurdo mas, mesmo depois de algum tempo, não posso deixar de agradecer pela gentileza das suas palavras.
Achei muito proveitoso seu comentário. Análises externas são sempre importantes pra que possamos rever nossos conceitos e aperfeiçoa-los. Agradeço por sua forma objetiva em declarar suas convicções; foram de grande valia.
É provável que hoje eu poste algo novo, sendo assim, espero sua visita novamente.
Obrigada e um beijo! :)

~ a Juh! disse...

Oi João!

Os selos são o seguinte, você foi presenteado por mim e se quiser repassa pra outros blogs que você gosta. Tipo o selo que eu criei, o "Esse blog me faz sorrir". Você posta a imagem do selo, lista 7 coisas que te fazem sorrir e repassa pra 7 blogs que fazem você sorrir.
É simples, mas você faz só se quiser, ok? Não á nada obrigatório =)

Beeeeeeeeeeeijos