Toda vida caminha para a sua finitude. Nesse caminho, existem infinitas rotas que sempre prosseguem, mesmo que de vez em quando um sentimento de retrocesso apareça. Prosseguir é uma ação intrínseca à vida. Embora permeie a imaginação de muitos sonhadores, a humanidade ainda não conseguiu inventar a tecnologia da viagem no tempo, e mesmo que a inventasse, seria um esforço inútil. Voltando desse breve devaneio, consigo imaginar dois tipos de caminho, a partir da pouca experiência que a vida me proporcionou. Esta tipologia totalmente arbitrária não se furta de um julgamento de valor explícito, embora tal observação seja desnecessária, tendo em vista a inexistência de qualquer enunciação imparcial.
O primeiro caminho consiste numa linha reta, aquele onde a dúvida por onde ir inexiste. No motor dos passos, encontram-se crenças e convicções empedradas. Como a máscara que disciplina o burro, torna-se incapaz de se olhar para os lados. Não é uma recusa, e sim incapacidade, pois não há escolhas. É um caminho rápido, eficiente e seguro, não há questionamento em momento algum, pois o horizonte claro à frente corresponde inteiramente às expectativas do andarilho. É o caminho da salvação e do sucesso.
O segundo caminho é o inverso. Aquele cujo, a cada distância percorrida, maior ou menor, abrem-se novos cursos, cujo destino se desconhece. Este é o caminho daqueles que não se contentam com um destino dado, que não se acomodam ao se depararem uma estrada asfaltada e sombreada de lugares comuns. As promessas de futuro não acometem, este andarilho é pleno de presente, insaciável por vida. O que dizemos por “vida” refere-se à vontade de olhar por outros olhos, experimentar novas sensações e sentimentos. A estrada é esburacada, encontra-se em seus interstícios densas florestas e desertos secos. Ante os obstáculos, o homem cai, levanta, machuca-se, mas quando depara-se com um espelho d’água, admira suas cicatrizes, experimentando o gozo e as lágrimas ocasionadas pelas lembranças de cada uma daquelas marcas.
Seguir pelo segundo caminho não é simples ou fácil. Se o homem caminha inexoravelmente para a sua finitude, a existência é única. O desejo da extensão mais prolongada possível da vida condiciona instintivamente o homem ao primeiro caminho. A busca pela conservação motivou, durante toda a história conhecida disto que chamamos humanidade, as crenças que estruturaram a convivência entre os homens, estipulando os limites sob os quais podia-se caminhar. Seguindo um desenvolvimento linear criticável: primeiro as religiões “naturais”, depois as religiões que delimitaram o território do mundo e do sobre-mundo, e em seguida a razão, crença sobre a qual nossa existência se assenta. As possibilidades abertas partem da premissa de que a crença sobre a qual vivemos encontra-se em crise. Se a razão dotou os seres humanos de uma impressão de que eram os soberanos de seu destino, devido ao seu domínio técnico e intelectual sobre a natureza; também encarnou as relações humanas e com o mundo de total futuro. A razão deu prosseguimento ao longo processo de estranhamento ao natural, perdendo sua dimensão transcendente e tornando-se mero objeto da potência humana. Modelou as relações sociais com uma retidão aparentemente flexível, à medida que suas pulsões individuais foram drenadas para o rio do consumo. O homem passou a ser sua atividade produtiva, e sua realização o reconhecimento da eficácia de seu esforço no que produz. Pautado nesse horizonte restrito – a linha reta a ser percorrida – alienou-se de seu presente, tornando-se refém do futuro modelado pela crença dominante na razão.
Nesse mesmo caminho, alienou-se também de boa parte de sua dimensão sensível – subjugada e controlada em nome da “busca pela felicidade” – estranhando-se à dor e a todo sentimento e sensação “inútil”. O homem fruto da crença na razão tornou-se estranho ao seu presente e ao seu passado, logo estranho à própria vida.
Reconquistar a própria vida, eis o desafio do homem atual. E quando aqui falo em homem, refiro-me ao ser singular e ao ser coletivo. O percurso irrefreável do progresso, uma vez atingido em sua crença fundamental, transformar-se-á em quimera breve. Se hoje a abertura dos horizontes do presente é fenômeno singular – de indivíduos que postam-se reagentes ao regime de pulsões que impossibilita o viver em sua dimensão integral – é possível que se torne coletivo, desmoronando oculto aos olhos da sociedade. A revolução não virá como uma promessa de futuro, mas sim de presente, principalmente quando este homem tomar ciência de que sua potência está em arriscar o imponderável, pondo permanentemente em dúvida o seu percurso. E como somente prosseguimos, as conquistas da razão – o mundo do conforto e do consumo – encontrará seu curso, ocupando um lugar secundário. Prosseguiremos livres para olharmos para o passado sem desejar o futuro, buscando conservar uma vida coletiva onde será possível ao indivíduo explorar da forma mais intensa possível o presente – integral e humano – sem pressa alguma.
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