sábado, 12 de abril de 2014

O tempo da experiência

É verão e a luz do sol ilumina. A alta claridade produzida por seus raios impõe-se aos olhos que, coagidos, semicerram-se. É a pele, entretanto, que mais sente. Quente. Ardência. Suor. O corpo frita na panela de cimento, boiando no óleo de gente. . 
O processo de fritura dura o tempo entre o desembarque em Campo Grande e o livrar-se da multidão plantada às portas da estação de trem. Sob o atordoamento do choque térmico produzido pela passagem do ambiente à 20º C para outro à 40º C, atravesso a roleta de ferro e desço o pequeno lance de escadas concretadas. Não há a menor possibilidade de impor meu ritmo aos passos. Tenho apenas um espaço fluído, cuja ocupação é determinada pelo sentido da multidão que me conduz.
Meu corpo é a multidão. Meu corpo é o espaço construído e o apropriado. Ambulantes, suas barracas e gritos, os homens das vans, seus veículos e gritos, a calçada estreita e o povo à espera de condução, o concreto quente, os gases da combustão e seus cheiros, risos, resmungos, e meu corpo que transpassa penetrado.
Há poucas sombras no retão às margens da linha férrea. Intermitentes, as árvores apenas enfeitam a cidade concreto cinza. Descarnado da multidão, ouço meus passos, minha respiração e um pouco dos meus pensamentos.
O tempo passa no ritmo dos meus passos e respiração. As referências das horas, minutos e segundos me são alheios. Meu tempo é a luz e o calor que do sol emanam, o suor que escorre das têmporas e faz arder os olhos, minha sede,  o estalo dos ossos corroídos pelo uso, o gosto da minha saliva, os movimentos do meu intestino. Meu tempo são os volumes e os tons díspares das vozes e dos ruídos inorgânicos, a temperatura dos corpos e objetos que me passam, o universos de odores orgânicos e sintéticos, o vento produzido pela velocidade dos carros. Meu tempo são os olhares que me encontram furtivamente, os pedaços de corpos que meus olhos buscam, a visão de um homem sujo e sem pernas que atravessa a rua, de um bebê que dorme em seu confortável carrinho.
Meu tempo é o contato do meu corpo com a explosão de sentidos e sensações que a cidade fornece. Meu tempo é a abertura do meu corpo ao mundo, um interstício sem passado ou futuro. Meu tempo é meu corpo num intervalo de eterno presente. A eternidade do que apenas há.
Há uma profundida infinita em tudo que existe. Horizontes. As profundezas não são tormentosas, mas a perenidade de uma harmonia incompreensível. O caos é apenas uma palavra inventada pela violência ordenadora do homem. Nosso corpo é o mundo num elo natural. A vida é viável quando não tentamos ordená-la.
Olha-te, mas olha-te com os olhos despidos dessa roupa que falsifica a vida. Em ti, encontrarás todos os encontros. Em ti, saberás que nada falta, e nesta ausência descobrirás o amor mais belo e sublime. Em ti, encontrarás um deus sem identidade, sem nome, sem sexo e sem cor. Em ti serás feliz. 

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